Da Linha Amarela para a sala de aula: o combate ao trabalho infantil na Maré

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Por João Ker

De acordo com dados divulgados pela Rede Peteca, em outubro, 2,7 milhões de crianças e adolescentes brasileiros, entre 5 e 17 anos, fazem parte do mercado de trabalho no País. Desses, 71.261 estão no Estado do Rio de Janeiro, onde 97% de “empregos” vêm de áreas urbanas, o que torna o Rio no estado brasileiro de maior incidência nesse recorte. Para quem passa pelo entorno da Maré, na Linha Amarela, os dados não são nenhuma surpresa: por ali, menores de idade se revezam entre os carros e ônibus enquanto tentam vender balas, água, biscoitos, pipoca ou, simplesmente, conseguir umas moedas no trânsito. E é para esses jovens que o Projeto Integração Maré, criado em 2014, procura levar uma  alternativa de vida, unindo diferentes grupos e instituições para que a educação e o desenvolvimento pessoal dessas pessoas não fiquem em segundo plano.

Criança não deve trabalhar, lugar de criança é na escola. De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA),  a “proteção da infância e

Mapa do trabalho infantil no Brasil, liberado pela Rede Peteca em outubro deste ano

garantia de seus direitos” deveria ser prioridade máxima do governo e seus representantes. Mas, pelos números mostrados acima, o retrato é outro: com 40% das crianças brasileiras vivendo em situação de miséria, não são raros os casos em que um menor de idade se vê na obrigação de abondonar os estudos, amadurecer antes da hora e ajudar no sustento da casa de um jeito ou de outro.

De acordo  com o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), um dos órgãos protagonistas no enfrentamento desse problema na Maré, um dos principais desafios no combate ao trabalho infantil é a própria mentalidade do brasileiro sobre o tema. “O retorno que recebemos de nossos agentes, que estão constantemente nas ruas, é que isso tem sido culturalmente aceito pela sociedade, em muitos casos como reflexo de alguns mitos, como o de que ‘é melhor criança trabalhando do que na rua roubando’, ‘quem começa a trabalhar cedo garante o futuro’, e por aí vai. Na verdade, o que a realidade nos mostra é que o trabalho infantil não afasta da criminalidade, sendo muitas vezes o caminho inicial para a prática desses delitos”, explica.

Quem também enfrenta a supremacia de tal “conhecimento popular” sobre o trabalho infantil é Eufrásia Souza, que há 22 anos trabalha na Coordenadoria de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente, na Defensoria Pública: “as pessoas falam que ‘é melhor criança trabalhando que na rua’ como se elas só pudessem ter essas duas opções na vida. O trabalho infantil é uma violação de direitos e não pode ser  uma questão banalizada, como era antigamente”. Como ela reforça, “é imprescindível que o jovem menor de idade tenha acesso à educação para que seu desenvolvimento como adulto ocorra de forma saudável”.

“Temos o planejamento de uma série de ações em parceria com psicólogos, assistentes sociais e o programa de Jovem Aprendiz do Instituto Brasileiro Pró-Educação, Trabalho e Desenvolvimento (ISBET), tentando criar uma sensibilização para que os empresários recebam essa população das favelas em suas Companhias. Precisamos pensar muito por que essas crianças estão trabalhando e de onde vem isso”, explica Inês Cristina Di Mare Salles, que lidera o programa “Nenhum a Menos”, da Redes da Maré, e também representa a ONG no Projeto Integração. Para ela, há inúmeros preconceitos que essas crianças e adolescentes em situação de trabalho irregular – engraxates, vendedores de bala, etc. – sofrem na sociedade, o que dificulta ainda mais a melhoria de vida delas. “Quando as pessoas veem um menino vendendo ou pedindo alguma coisa, a tendência geral é de marginalizar.

Nesse momento atual do País, temos um pensamento preconceituoso sendo divulgado, então precisamos mostrar outras formas de compreender esse fenômeno”, reforça. A origem do problema, ela lembra, vem desde os primórdios do Brasil escravocrata. “Precisamos lembrar que isso é fruto do nosso processo histórico e mostrar para a população que a favela tem uma história. Ninguém quer pedir dinheiro, cometer um delito ou morar em um lugar sem condições. Isso tudo vem de uma lógica exploradora. Essa pobreza e essa desigualdade social têm cor, etnia e gênero”, explica.

O trabalho infantil é uma forma de continuar perpetuando o aprisionamento de pessoas com baixa renda às margens da sociedade. “Ele interfere no rendimento escolar e, em muitos casos, contribui para a evasão, não permitindo à criança um futuro melhor. O desafio é a criação de ‘atrativos’ que venham atender a necessidade da família, sobretudo, da criança e do adolescente nas suas particularidades. E é nisso que a Secretaria Municipal de Assistência Social e Direitos Humanos vem tentando trabalhar”, afirma o CREAS.

Uma das saídas que o Projeto Integração Maré encontrou para esses jovens é a inserção no Programa Jovem Aprendiz, no qual eles são obrigados a manterem uma frequência escolar para conseguirem um estágio remunerado. A outra é por meio dos projetos de extensão do Fundão, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. “A nossa ideia não é tirar esses meninos daqui, mas integrá-los em atividades que já existem e que eles mesmos mostrem interesse”, conta Rosana Morgado, professora da Escola de Serviço Social da UFRJ.

O fato de Rosana se referir aos jovens atendidos como “meninos” não é mera coincidência. De acordo com dados que vêm sendo levantados pela própria Universidade há mais de um ano, as crianças e adolescentes mais presentes no trabalho infantil do Fundão são do sexo masculino, moradores da Maré entre os 13 e 19 anos, e com algum tipo de núcleo familiar.

Enquanto estão vagando pelo campus, esses jovens são abordados por agentes da Escola de Serviço Social e, com algumas conversas, são apresentados aos programas de extensão oferecidos por ali. “O objetivo é que eles mesmos se interessem por essas atividades culturais, não que sejam forçados a escolher entre uma e outra”, conta Rosana, citando o “Universidade das Quebradas”, da Escola de Letras, como um dos programas preferidos entre os jovens.

No caótico trânsito do Rio, diariamente, é fácil encontrar crianças trabalhando | Foto: Fábio Café

A grande maioria desses menores de idade vive em situações econômicas precárias, em que a falta de renda familiar não pode ser simplesmente ignorada; é preciso que haja não só uma atividade atraente para que eles abandonem a rua, mas também uma forma eficaz de complementar a renda de casa sem prejudicar os estudos. “Por meio de uma escuta profissional, a família é orientada sobre o assunto, para que se construa um plano de acompanhamento, sempre buscando superar esta situação.

A partir disso, os dados entram no Cadastro Único do Governo Federal, para que ela seja beneficiada em programas sociais como Bolsa Família, Tarifa Social de energia elétrica, isenção em concurso público, Programa Minha Casa Minha Vida, além de a criança ou adolescente também ser inserido no Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos oferecido pelos Centro de Referência de Assistência Social  (CRAS), cujas atividades são realizadas fora do horário escolar.

Pelo Disk 129, famílias em situações vulneráveis podem encontrar ajuda legal para acessarem esses serviços, desde a regulamentação da documentação necessária até o próprio ato de inscrição. Há ainda o enfretamento de outro problema latente no trabalho infantil: o abandono que esses núcleos familiares sofrem por parte de uma figura paterna. “A realidade que a gente vê é essa: a maioria das crianças que trabalha está apenas sob responsabilidade da mãe, tanto para o sustento quanto para a educação. Se o pai desse algum apoio financeiro, a criança não precisaria trabalhar. É aí que o nosso Núcleo de Atendimento entra com uma ação contra esse homem que não paga a pensão, orientando a mãe e, muitas vezes, chegando a investigar a paternidade da criança, quando necessário”, explica Eufrásia Souza.

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