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28 anos da Maré como Bairro

Foto: Matheus Affonso

Revisitar o passado, olhar para o presente e atuar para o futuro.

Por Jéssica Pires e Julia Bruce em 24/01/2022

Em 19 de janeiro de 1994, a lei municipal 2.119/94 criou o bairro Maré e agrupou favelas que até então não eram reconhecidas como uma unidade. Com mais de 140 mil pessoas em 16 favelas, se fosse uma cidade, a Maré seria maior que 96% dos municípios brasileiros, segundo dados do Censo Maré. Dentro do território, os moradores vêm contando as histórias e particularidades de cada uma das comunidades, como os mareenses André Galdino (34), Andreza Dionisio (23) e Shirley Rosendo (38).


Para vocês que nasceram e cresceram na Maré, quais suas primeiras lembranças desse território?

Shirley: Eu nasci no Parque União onde fui criada pelos meus avós. Tenho muitas lembranças, mas a que me marcou muito foi o processo de transição urbana. Morei em uma rua que não tinha asfalto e só depois ela foi asfaltada. Também vi o Sem Terra nascer. O primeiro era uma fábrica, o pai de um amigo meu era caseiro e íamos para lá brincar. O que me marca é mais essa ideia de Maré. Eu nasci na rua São Pedro e cresci na rua Tiradentes [no Parque União], onde minha tia morava. Achavam que quem morava depois do armazém da Dona Nevinha era de classe baixa, e eu só podia ir lá se fosse acompanhada de alguém. Era uma cidade dentro de uma cidade, eu não lembro de ter visto barracos de madeiras no Parque União. O que me marca muito é essa questão de organização territorial, e como isso vai sendo apropriado e usado no decorrer do tempo, porque as pessoas do início do PU não se misturavam muito com as que moravam no final. A entrada do Curso Pré-Vestibular foi importante para ampliar a circulação de pessoas que eram de diferentes favelas.

André: Eu e Shirley temos uma vivência muito parecida. Eu morava na rua do armazém da Dona Nevinha, e toda a minha infância foi na Conquista e no Sem Terra 1. Inclusive, fui uma das primeiras pessoas a morar no local, mas havia um certo preconceito. Tenho a lembrança dessa estrutura que ainda não era cidade. Mas o interessante é que, de alguma forma, eu andava nos submundos dentro do Parque União. Por exemplo, eu tinha amigos que moravam próximos da Avenida Brasil, e tinha família que morava no final da Maré. Chegou um momento em que eu perguntei para os meus pais: “será que eu estou tendo essa imagem inventada na minha cabeça?”. Lembro de tudo ser água e andar em madeiras. Eu entendia a Conquista mais como a classe média, e no final da Maré tinha uma ideia de ser mais carente. Eu só vim a conhecer outros locais, como a Nova Holanda e Rubens Vaz, com o advento da ponte.

Andreza: Vocês estão falando de circular e essa questão sempre foi muito diferente pra mim… Eu tenho 23 anos, sou cria da Vila do João, morei até meus 20 anos na mesma casa, mas a minha mãe vive na Maré desde a época das palafitas na Baixa do Sapateiro, e meu pai é cria do Parque União. Meus pais sempre foram muito protetores. Tudo passava pela minha rua, tinha o baile da Disney… Minha mãe não deixava eu ir pra rua sozinha e meu pai também tinha um bar e sempre comentava das coisas que aconteciam. Eu estudava na divisa. Então, na minha vida toda eu circulei muito. A partir dos meus 15 anos, parei de apenas passar pelos lugares e pela minha família, e comecei a criar laços, a curtir a favela de fato.

Shirley: Eu sempre fico me perguntando: o que aconteceu? Na época havia muitos guetos, hoje vejo as crianças circulando muito mais. Como cuidar das crianças e dos adolescentes da Maré e garantir, de fato, que eles circulem? É preciso ter uma rede de cuidado mínimo. Era uma comunidade muito pobre, sem estrutura de lazer. Hoje temos mais, mas as pessoas não aproveitam os espaços. Talvez as crianças hoje brinquem menos na rua do que a gente brincava. Eu acho que esses espaços de encontro são fundamentais, porque é na rua que sua vida começa, que você aprende a lidar com a diferença. Onde estão as crianças brincando? A urbanização é boa até que ponto? E que tipo de urbanização pode-se fazer? Porque hoje as ruas são dos carros e das motos.

Andreza: Shirley está falando disso e me lembro da ciclovia na Vila do Pinheiro, como que foi perdendo aquele espaço. Eu ia sempre fazer piquenique lá. Eu fico pensando que tem um processo de entender a Maré como um todo. A internet tem possibilitado muito esses encontros, esse fluxo, como o grupo de Facebook dos moradores. Acredito que agora tem muito mais gente de fora circulando pela Maré, e nos sentimos mais seguros.


Como chegaram na Redes da Maré?

Shirley: Eu fazia parte de um setor de mobilização, cheguei a participar da Comunicação, fazia a gestão do site do jornal, fui coordenadora do Curso Pré-Vestibular e até diretora. Fiquei 3 anos fora da Redes, mas voltei para o Eixo de Segurança Pública e Acesso à Justiça. Vivi guerras no território, movimentos contra a violência, e acredito que evoluímos muito na discussão sobre segurança pública. Mas o desafio para toda a Redes, que tem mais de 20 anos de história, é vislumbrar o futuro. O que queremos para a Maré em 10 anos? E o que vamos fazer para isso?

André: Eu também gosto de trabalhar com essa perspectiva de futuro: o que a gente quer, para onde queremos ir e como podemos alcançar? E a minha relação com a Redes começou há muito tempo. Cheguei a ter aula de redação no CPV com a Eliana Sousa. A Redes sempre foi o lugar de acesso, ia assistir a palestras, debates, eventos, seminários. Sempre me senti parte da Redes. Em 2010, comecei a trabalhar como agente comunitário de saúde e foi a partir dali que essa ideia de andar no território ampliou a forma como eu entendia a favela para além de ser apenas um morador: conheci diversas Marés dentro da Maré. Em 2016, entrei no coletivo Movimentos, que pensa segurança pública a partir das favelas e conversa com os maiores especialistas da área de drogas, participando de eventos e ações nas escolas. A partir dessa ligação, e pelo fato de eu sempre estar presente nas ações da Redes, minha chegada na organização culminou com a criação do Espaço Normal em 2018.

Andreza: Diferente da Shirley e do André, eu não tinha nenhuma relação com a Redes. Eu nunca soube o que era a Redes, vim a saber quando teve uma campanha “Jovem Negro Vivo” (2015), com a Anistia Internacional, e senti vontade de me aproximar. Quando estava na faculdade, abriu uma vaga de estágio na Casa das Mulheres, entrei em 2018 e me encontrei. Criei um afeto grande e trouxe muito isso pra mim, mas como vivia na Vila do João, alertei que os moradores de lá não tinham acesso à Redes e que a gente tinha que ultrapassar esses limites de alguma forma. Assumi depois a responsabilidade da organização das confecções de máscaras durante a pandemia, e fui contratada como tecedora, fazendo parte da equipe de atendimento da Casa das Mulheres. A Redes reconfigurou minha relação com a Maré, e hoje, na Casa, também tento construir perspectivas e sonho alto, porque ela me permite isso.

Shirley Rosendo, Andreza Dionísio e André Galindo na Maré.


A mobilização territorial acabou se tornando uma metodologia importante no trabalho da Redes da Maré. Vocês podem explicar o que é isso, como isso acontece na Maré e porque se tornou fundamental pensar em ações com essa estratégia?

André: Ficamos muito presos a essa ideia de estar articulando com os territórios e estar presente em todos os lugares, e fazer ações com grandes proporções. Mas quando penso em mobilização, são as redes que criamos com o intuito de chamar a atenção, é a mobilização pontual permanente no dia a dia, trabalhando a ideia de entender até onde essa mobilização pode ir. Ela se dá muito no micro, e quando juntamos esses pedaços, gera o macro. Eu trabalho muito na questão da acessibilidade, e a mobilização é constante.

Shirley: As pessoas que chegam pra gente têm demandas individuais, mas a virada é você sair de mobilizações individuais para mobilizações coletivas, porque só estas podem impactar a estrutura. Mobilizar é mover-se para algum lugar. E como a gente contribui para que as pessoas se apropriem disso, no sentido de pertencer? Também é olhar para trás e entender a nossa história, entender quais foram os erros. É a ideia de como você olha para o passado para mudar o futuro.

Andreza: Concordo muito com o André que a importância da mobilização tem esse papel de micro no território. É onde acontecem as coisas, está no lugar de planejar, de incidir políticas. Eu acredito que mobilizar é uma ponte, é o que leva, é pôr em prática.

Shirley: Eu acho que temos que ser otimistas, mas com razão. Temos as possibilidades de fazer, mas o fim não pode ser em si mesmo. Talvez a gente vá ganhando com as experiências de fato, porque é um processo de mudança coletiva, mas não é fácil. A Maré não consegue visualizar que as ações de demandas individuais são coletivas. Ser otimista e sonhador é também olhar para o que é a vida.

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