A celebração da resistência e identidade das favelas brasileiras

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“Meu nome é favela, é do povo do gueto a minha raíz, becos e vielas. Eu encanto e canto uma história feliz, de humildade verdadeira, gente simples de primeira…”, essa música composta por Rafael Delgado ficou imortalizada na voz de Arlindo Cruz. A letra resume um grito que reconhece a resistência, a potência e a importância social, cultural e histórica das favelas brasileiras. O Dia da Favela (4/11) celebra a capacidade de superação e o protagonismo dos moradores, que, apesar das adversidades, continuam transformando realidades.

Este ano, um motivo a mais para comemorar é o retorno, depois de 64 anos, do nome favela reconhecido pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), substituindo o antigo termo aglomerado subnormal. O nome favela surge oficialmente num documento no dia 04 de novembro de 1900. De forma pejorativa, um chefe da polícia se referiu ao Morro da Providência como favela. Mal sabia que o termo seria ressignificado e hoje faz parte da identidade local.

Uma outra versão sobre o nome, informa que o termo surgiu a partir de um morro onde militares atacavam os seguidores de Antônio Conselheiros, na Guerra de Canudos, no sertão da Bahia. O morro era conhecido como favela, por sua vegetação repleta de uma planta medicinal resistente e de espinhos, chamada de faveleira da Caatinga. Já o Dia da Favela é criado como lei na cidade do Rio de Janeiro só em 2006, e no estado, posteriormente, em 2019. 

Segundo a Central Única das Favelas (CUFA), o Dia da Favela foi instituído pela instituição em 2006 para dar visibilidade à força das favelas brasileiras, destacando seus talentos e conquistas em diversas áreas, como cultura, esporte, empreendedorismo e educação. Para a CUFA a data não comemora a existência das favelas, mas reconhece seus desafios, tornando-se um momento de reflexão para que seus moradores possam avaliar o que já foi conquistado e o que ainda precisa ser alcançado.

Outra instituição que tem representatividade e história de luta é a Federação das Associações de Favelas do Estado do Rio de Janeiro (FAFERJ), criada há 61 anos. Ela lutou contra as remoções e atualmente representa 860 associações de moradores. Rossino Castro Diniz, presidente da FAFERJ, diz que lamentavelmente não há muito o que comemorar. “Falta políticas públicas. Vivemos tempos difíceis, após um governo federal que sufocou o trabalho social, que causou perdas irreparáveis. Não só a Maré, mas todas as favelas são formadas por pessoas do bem, que pagam seus impostos e por isso precisam ser bem tratados. A favela precisa ser vista com bons olhos”, expõe.

A FAFERJ se identifica como uma instituição de trabalho, luta e resistência, dessa forma este ano recebeu a honraria de ser ponto de cultura. Recebeu também as medalhas Tiradentes e Pedro Ernesto, além de moção. “Queremos continuar lutando pela favela, pois não existe cidade partida, a favela é cidade e a cidade é favela. A favela representa a nação e por isso continuamos cantando: eu só quero é ser feliz, andar tranquilamente na favela onde eu nasci. Isso só não acontece quando somos impedidos pelas forças policiais, que discriminam os favelados”, comenta.

A resistência para sobrevivência

O professor André Gomes, doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica (Puc-Rio) lembra que já no século 19, quando a favela é constituída, há um olhar da sociedade, descrito nos jornais da época, de um espaço de miséria e com pessoas muito pobres. Era um período da modernização da cidade, quando os cortiços são destruídos e as pessoas vão sendo jogadas ao redor da cidade, no alto dos morros, com o aval do governo Pereira Passos. Dessa forma, as favelas são construídas, reunindo a grande maioria de pessoas negras e migrantes.

“O território é muito mais do que se vê na mídia, como um espaço violento, onde o Estado tem que intervir. Enxergo a favela como esse lugar que não é só da ausência, mas profundamente da potência. E nesse espaço que nascem construções de relações sociais muito particulares e específicas, de colaboração e de dignidade. A gente tem uma geração mais nova que, na verdade, perdeu um pouco esses referenciais, em função até de como a favela foi esquecida pelo poder público”, afirma. Ele acredita que a favela tem muito a contribuir com as cidades mostrando a relação de solidariedade.

Desde a Favela da Providência, são muitos desafios. Antônio Carlos Firmino, mestrando em memória social e cofundador do Museu Sankofa Memória e História da Favela da Rocinha, observa que ainda há muito desrespeito por parte dos poderes públicos, além do racismo estrutural, ambiental e preconceito social. “A Favela é cidade, isso ouço muito do Itamar Silva, uma liderança intelectual da Favela do Santa Marta. Mesmo que os poderes não queiram, é cidade, isso mostra o professor Adair Rocha, no seu livro Cidade Cerzida: A costura da cidadania do Morro Santa Marta. Vejo que são muitos os desafios, dentre eles, é de sermos considerados cidadãos”, acentua. 

“Ainda é possível comemorar, pois estamos vivos e podendo ainda fazer algo dentro das nossas realidades. Sobre as favelas, elas nascem em função do racismo, o preto nesta sociedade só passou a ser considerado ser humano recentemente. Em nosso país não foi pensado para seu conjunto da sociedade. Somente para aqueles que chegaram da Europa tem prestígio. Os africanos foram trazidos a ferro, fogo, espada e pela cruz, e depois abandonados sem direitos”, diz. 

Para Dani Lopes, liderança no Complexo de Favelas da Mangueirinha, assistente social, especialista em políticas públicas, a favela precisa da garantia de acesso às políticas públicas de modo geral. “Temos muitos desafios no que se refere a habilitação, saneamento e educação. Há um grande déficit de creches que impacta no desenvolvimento econômico das famílias e dos territórios, já que muitas mulheres não conseguem trabalhar. Há interferência constante das ações de segurança pública que afetam o cronograma pedagógico e a qualidade do ensino. É difícil aprender em meio à tensão constante”, comenta. Ela defende que são muitos os desafios, mas na mesma proporção são muitas potencialidades.

Lopes acredita que nesse dia se celebra a resistência e a ancestralidade. “Celebramos a cultura diversa, colorida e amontoada que faz de nós, favelados, a própria favela em si, única e mergulhada em potência e possibilidades. Uma celebração consciente dos desafios, mas vestida de muito orgulho de nossos territórios. A favela é vida em movimento, é construção, ampliação e fortalecimento de novas tecnologias sociais, na mobilização e organização política”, comenta.

Ela acrescenta que a favela é um grande quilombo contemporâneo. “Não somente por concentrar uma maioria de pretos e pardos, mas também por emergir coletividade e resistência. Ainda lutamos por liberdade, vida, água, comida, como nos quilombos, só temporalizamos a organização, as tecnologias e compreendemos nossa força. Fica o recado, não aceitamos mais nada sobre nós sem nós”, revela. A moradora de Duque de Caxias diz ter orgulho de ser favelada e para demonstrar esse amor fez uma poesia:

Sobre seguir, a gente chora a cama vazia do filho perdido pela bala achada.

A gente grita o desespero do parto e o vazio do prato.

A gente sofre.

A gente lamenta a vida e quase todo dia, a morte.

Mas a gente segue, porque a favela é mulher forte.

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