A bola é delas: resistência feminina nos campos e nas quadras

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Com o crescimento do futebol feminino, coletivo mareense MariEllas conseguiu se reunir em meio à pandemia e criar um espaço de futsal exclusivo

Por Tamyres Matos

“O futebol feminino é um espetáculo ridículo”. (Leite de Castro, chefe do departamento médico da Liga de Futebol do Rio, em artigo no jornal O Dia Esportivo, em 1940.)

“Pé de mulher não foi feito para se meter em chuteiras” (Iguesil Marinho, assistente técnico do Ministério da Educação, em entrevista ao jornal O Imparcial em 1941.)

Ambas as falas aparecem em uma bem-sucedida campanha pela proibição do futebol feminino — entre 1941 e 1979, a prática do esporte foi vetada às mulheres no Brasil. Com a sua liberação, a mobilização política e a resistência das atletas alterou essa situação: nas últimas duas décadas, a popularização da prática foi impulsionada pelo sucesso da “geração Marta”. Na televisão e na internet, a audiência das partidas femininas tem subido progressivamente; nas ruas, é possível ver meninas de todas as idades batendo bola por aí.

Na Maré, o coletivo MariEllas conseguiu reunir mulheres para jogar futsal (futebol adaptado para quadra com equipes com cinco jogadores) em meio às restrições da pandemia. A partir de um grupo de WhatsApp criado em agosto de 2020, elas jogaram sua primeira partida em setembro do mesmo ano, e a partir dali se reúnem sempre, respeitando sempre os altos e baixos do cenário epidemiológico. Atualmente, o grupo é formado por 47 jogadoras, e as atividades do grupo também incluem ações sociais para apoiar mulheres em situação de vulnerabilidade.

“O futebol feminino começa a ter o seu lugar, e a cena nacional, aos poucos, abre espaço para que as mulheres ocupem seu merecido lugar num esporte que seguia  exclusivamente masculino. Na Maré, sempre tivemos meninas que jogam futebol; porém, elas sempre precisam dividir o lugar com meninos. Com poucas representantes, um dos nossos objetivos é proporcionar às meninas um local feito por e para elas”, explica Lilia Arcanjo, moradora da Baixa do Sapateiro e uma das fundadoras do grupo.

Batizado em homenagem ao símbolo da resistência mareense Marielle Franco, o coletivo traz do berço os ideais de combate ao racismo, ao machismo e à LGBTfobia. “O futsal para mim é a conquista de um importante espaço num esporte que ainda é dominado por homens. Quero deixar um legado para as gerações futuras: que meninas possam crescer em um mundo onde podem fazer o que quiserem”, diz Lilia.

Raquel Santos Albuquerque, de 35 anos, moradora da Vila do Pinheiro, é uma das integrantes do coletivo. Ao refletir sobre o papel do MariEllas em sua vida, a auxiliar administrativa destaca que, para além da saúde física, participar de grupos com interesses e objetivos comuns é essencial para uma mente sadia. “Isso é de extrema importância pra minha vida; me faz muito bem, tanto física quanto psicologicamente. Trabalho, sou mãe; é a hora que tenho um momento que é meu”, afirma.

As reuniões do time acontecem três vezes por semana: quarta às 19h30 e sábados e domingos, às 8h, na quadra do Pontilhão Cultural, embaixo do viaduto da Linha Amarela, na Vila do Pinheiro. O coletivo está aberto à participação de interessadas, sem necessidade de inscrição: é só aparecer nos dias de atividade. Quem não puder ir até lá, entre em contato através do perfil no Instagram (@mariellas_mare/) demonstrando o interesse em integrar o grupo.

Como acontece com outros coletivos, o financiamento é uma questão delicada também para as MariEllas. No início, elas foram apoiadas por amigos e familiares, ganhando uma bola e coletes. Agora, elas dependem de doações para manter e expandir as atividades e as ações sociais do coletivo. Para colaborar, é só doar para o Pix de e-mail [email protected].

Histórico e discriminação

“Sempre gostei de jogar bola, mas era muito difícil quando criança por causa dos apelidos que me davam e me incomodavam, como ‘Maria João’ e ‘Maria Homem’. Ainda há piadinhas sobre mulheres jogando bola, mas isso não nos faz ser menos”.  (Bruna Aparecida Lopes de Oliveira, 30 anos)

“Não me sinto muito respeitada, sempre fica aquele grupinho machista rindo em dia de treino do nosso futsal”. (Liliam Fabricio da Silva, 29 anos)

Os depoimentos das jogadoras do MariEllas, infelizmente, são muito comuns. Mesmo depois de décadas do fim do veto ao esporte para as mulheres, o machismo perdura e é impossível de não ser notado.

A semana da rodada inaugural do Campeonato Brasileiro de futebol feminino em 2021 aconteceu 80 anos depois da instituição do decreto-lei que proibia o esporte de ser praticado por mulheres no país. Em entrevista ao site El País Brasil no ano passado, Aline Pellegrino, ex-jogadora e coordenadora de Competições Femininas da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), afirmou que ainda vivemos as consequências do veto imposto pelo governo do presidente Getúlio Vargas. “Sem a proibição, o Brasil já teria uma Copa do Mundo ou o ouro olímpico no futebol feminino”, acredita Aline.

Símbolo do aumento da relevância da prática no Brasil e no mundo, a atacante Marta, camisa 10 da seleção brasileira, trava há anos uma luta por respeito e valorização. Como um dos resultados da busca por equidade salarial representada pela melhor jogadora de futebol do mundo cinco vezes eleita, desde 2020 a CBF paga os mesmos salários a atletas homens e mulheres. Ou seja: quem joga pela seleção brasileira ganha a mesma diária para treinar e representar o país, além de fazer juz aos mesmos valores em bônus e premiações nos Jogos Olímpicos.

Sucesso e futuro


Seja em audiência, admiradores ou faturamento, a prática feminina do esporte mais popular do mundo tem ganhado relevância planetária. Um balanço divulgado pela Federação Internacional de Futebol (FIFA) em fevereiro mostrou que as transferências internacionais de profissionais no início do ano movimentaram mais de US$ 310 mil (cerca de R$ 1,68 milhão). Esse valor é 60% acima do registrado no início de 2020, mesmo que ainda não se compare com as cifras do futebol masculino.

A Copa do Mundo de Futebol Feminino de 2019, realizada na França, comprovou ainda a tendência de crescimento da atenção ao esporte: o evento gerou uma audiência recorde de 993 milhões de espectadores pela TV e 482 milhões via plataformas digitais, segundo a consultoria Deloitte. A audiência média global, de 17,3 milhões de telespectadores por jogo, é mais de duas vezes maior do que a da Copa do Mundo feminina de 2015, no Canadá (8,4 milhões de telespectadores por jogo).

De acordo com a CBF, em sua edição de estreia a Supercopa Feminina Betano, competição que abre o calendário do futebol feminino no Brasil, foi assistida por 46 milhões de pessoas somente pela TV Globo. Além dos bons números de audiência, a Supercopa Feminina contou com a presença significativa nos estádios. Dentre os destaques, duas partidas envolvendo o campeão, Corinthians: a estreia diante do Palmeiras (13.890 espectadores) nas quartas de final, e a decisão contra o Grêmio (19.547 espectadores).

A pesquisa ainda aponta que a faixa etária que mais acompanhou a Supercopa Feminina foi a de 50 anos — os homens em primeiro lugar. Segundo a confederação, isso mostra que o futebol feminino tem potencial para atingir um “leque diverso de audiência”.

Para o incremento no futebol feminino, a CBF passou a exigir em 2019 que todos os clubes presentes nas competições oficiais do masculino também formassem uma equipe feminina. Com isso, a quantidade de times considerados relevantes triplicou nos últimos três anos. É possível afirmar que os bons resultados das jogadoras brasileiras em competições internacionais impulsionou essa decisão — uma geração que tem feito história e mudado a cultura do país no esporte. O desejo manifestado por todas as entrevistadas é que campos e quadras (dentro ou fora da Maré) sigam ocupados pelo feminino. Que a bola seja delas, se elas assim o desejarem.

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