Como a memória e a pluralidade cultural fortalece as comunidades e cria resistência contra a marginalização das favelas
Henrique Silveira
O conjunto de favelas da Maré é conhecido pela diversidade cultural, desde os espaços de produção musical como a praça do forró no Parque União, os bailes funk, o samba, o rock, as rodas de rap, grupos de teatro, até a criação de polos gastronômicos em várias partes do território, que se tornaram referência até para quem não é morador.
Os cerca de 140 mil mareenses são parte fundamental da construção do bairro Maré e a principal fonte da pluralidade e efervescência cultural que existe no território.
Cultura e favela
A cultura, como um direito humano inalienável, é o tecido que une as diferentes facetas da humanidade, abrangendo não apenas as artes e tradições, mas também práticas cotidianas, rituais e narrativas que dão significados à vida das pessoas.
Nas comunidades periféricas a cultura é uma força vital que sustenta a identidade coletiva e fortalece laços comunitários. Reconhecer a cultura como um direito humano é afirmar a importância da diversidade e da inclusão, garantindo que todas as pessoas tenham a liberdade de expressar suas identidades culturais sem medo de discriminação ou repressão.
No entanto, moradores de favelas historicamente enfrentam a marginalização que, ao longo dos anos, atualiza um status de desumanização herdado do colonialismo com ramificações até os dias de hoje. Manifestações culturais oriundas de espaços favelados são frequentemente categorizadas como ingênuas, exóticas ou a-culturadas sendo, inclusive, criminalizadas e historicamente proibidas.
Este ciclo de marginalização e desvalorização impede a plena apreciação de seu impacto e, até mesmo, do seu reconhecimento como cultura brasileira, e se naturaliza no senso comum. O cenário de marginalização contrasta fortemente com a rica contribuição cultural de muitos dos moradores da Maré.
Um legado maranhense
O Censo Maré (2019) aponta que 25,8% dos moradores são pessoas nascidas no Nordeste do Brasil. Os nordestinos que migraram para o Sudeste trouxeram uma vasta experiência sensorial, cultural e ancestral fundamentada nas vivências e corporalidades da região, chegando aqui com variados estilos de danças, música, gastronomia e costumes.
Um exemplo disso, está na história do Mestre Teodoro Freire, do Bumba Meu Boi do Maranhão, que na década de 1950 migrou para o Rio de Janeiro, fixando-se na favela da Baixa do Sapateiro. Na Maré, Mestre Teodoro fundou a Sociedade Carioca do Folclore Maranhense, que realizava festas na Rua Nova Jerusalém. Em uma entrevista para o jornal Tribuna de Imprensa, ele falou sobre sua trajetória e sobre a festa do Bumba Meu Boi.
“Instalei-me cá na Baixa do Sapateiro e comecei a promover encontros com meus conterrâneos. Falava-lhes sempre da necessidade de fundarmos um grupo de folclore maranhense autêntico. Mas faltava tudo. Mas, pouco a pouco fomos aumentando em número. Eram maranhenses já com nosso endereço que aqui vinham chegando de navio ou pau-de-arara se instalando na favela”.
Os espetáculos do grupo do Mestre Teodoro, Brasil Independente e Brilho da Sociedade, ficaram conhecidos no Rio de Janeiro, e chamaram a atenção do escritor e também maranhense Ferreira Gullar, que o entrevistou e convidou para apresentar o Boi na recém criada Brasília, em 1961. Logo depois, mestre Teodoro se mudou para a capital, acomodando-se em Sobradinho, em 1962.
Até hoje, cerca de 24,3% das pessoas nascidas no Maranhão que vivem no território da Maré, são moradores da favela Baixa do Sapateiro, sendo essa a maior comunidade maranhense do conjunto.
‘No Carnaval eu vou voltar’
Outro ponto crucial para a pluralidade e força cultural do território, aconteceu a partir das remoções nas décadas de 1960 e 1970, como a favela do Esqueleto, Morro do Querosene, Praia do Pinto e Macedo Sobrinho. Grande parte desses moradores foram trazidos de forma compulsória para a Maré.
Essas pessoas removidas acabaram por perder, não apenas vínculos afetivos entre suas famílias e amigos, mas também fazeres culturais de características comunitárias, como o samba, o jongo, o Bumba meu boi e a Folia de Reis.
A folia de reis Estrela do Oriente da Baixada acolheu alguns dos moradores que participavam da folia de reis na Nova Holanda. Durante muitos anos, este grupo se esmerou em se apresentar na Maré, juntando-se aos poucos moradores que ainda faziam questão de participar ativamente do cortejo para manter a tradição viva, conforme mostra a matéria do jornal O Globo, de dezembro de 1977: Na favela, a Folia de Reis alegra o Natal.
“O palhaço Bonitinho, a maior atração da Folia de Reis Estrela do Oriente substituiu ontem para milhares de crianças da favela Nova Holanda,em Bonsucesso, a figura do Papai Noel.”
As remoções das favelas eram uma preocupação também para as agremiações de samba da época, que tinham como componentes os moradores dessas favelas, assim, ao serem removidas, punham em risco os blocos e escolas.
Moradores como a porta-bandeira Nilceia, da Independentes do Leblon. Em entrevista para o Jornal do Brasil, em maio de 1969, após perder a casa no incêndio criminoso que destruiu a favela Praia do Pinto, ela declara:
”Nasci na favela e me criei na escola, agora, a favela acabou, e eu vim morar na escola com minha geladeira e minha televisão, que foram as únicas coisas que me sobraram. Mas, mesmo que eu vá para Cidade Alta, Cidade de Deus ou qualquer outro lugar, no carnaval eu vou voltar.”
Comunidade produz cultura
As práticas culturais tiveram um papel fundamental na reconstrução das vidas que foram desestruturadas pelas remoções. A favela Nova Holanda, por exemplo, com apenas dois anos de fundação, já integrava os circuitos de samba do Rio de Janeiro e participava dos desfiles dos blocos carnavalescos pela cidade. Essa participação possibilitou a construção de novos laços de pertencimento e senso comunitário entre os moradores oriundos de diferentes favelas, conforme ilustrado no trecho da matéria do jornal A Luta Democrática, em 1964:
“O bloco Unidos de Nova Holanda, simpática agremiação de Bonsucesso, terá dia quinze, um domingo festivo, com a programação que foi organizada pela sua Ala da Bateria. Pela manhã, com início marcado para às 3 horas, haverá um torneio relâmpago de futebol. Às 14.30 horas, será servida uma peixada ao som do partido alto, e à noite será realizado mais um ensaio de bloco”.
Falar da cultura de um povo significa falar de memória(s), por isso, compreender que as favelas são parte integrante das dinâmicas da cidade, e que seus habitantes desempenham um papel vital na construção do espaço urbano e na vida social cotidiana, é fundamental para a formação de uma cidade mais inclusiva e justa.
Falar do bairro Maré significa recorrer a essa memória cultural, que construiu esse espaço e fez dele um território, uma comunidade.