Do discurso para o Papa Francisco à Horta Comunitária: “É minha herança ancestral que me faz ter essa identidade territorial”
por Andrezza Paulo
Walmyr Júnior, de 38 anos, é historiador, cria da favela Kelson (Marcílio Dias) na Maré, e atua diretamente no local com incentivos à segurança alimentar, ao esporte e na luta contra o racismo ambiental e estrutural. Após um processo de remoção na década de 1970, a família de Walmyr chegou em Marcílio Dias, um território marcado pelo acolhimento às comunidades que foram removidas. Graduado em História pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio), Walmyr dedicou parte de seus estudos para entender a construção histórica da Kelson e a trajetória estabelecida pelos seus: “É minha herança ancestral que me faz ter essa identidade territorial. Minha árvore genealógica está aqui, sou cria da Kelson, tenho uma ideia de pertencimento, identidade e muito carinho, então gosto de fazer esse resgate”, conta.
A caminhada de Walmyr começou ainda jovem, na Pastoral da Juventude da Arquidiocese da Igreja Católica, uma iniciativa com formação integral dos jovens baseada no social e nas preocupações do cotidiano. O mareense diz que foi a partir desse lugar que “experimentou sua fé na humanidade”. Em 2013, Walmyr representou a sociedade civil ao realizar um discurso para o Papa Francisco no Rio de Janeiro.
O professor de história emocionou o público em seu discurso ao Papa: “Acredito que tinha tudo para fazer parte das estatísticas e ser mais um jovem exterminado pela violência de nossas cidades. Sempre presenciei, no local onde moro, o tráfico de drogas utilizando-se da juventude como mão de obra barata. Quando usei drogas pela primeira vez senti na minha pele as dores da juventude marginalizada pela dependência química. Superei essa fragilidade quando recebi o incentivo da minha paróquia a fazer uma experiência de voluntariado na comunidade paroquial. Desde então decidi reescrever minha história”, contou.
Movimento Negro
Após a vivência na Pastoral Jovem, Walmyr iniciou sua trajetória de incidências na favela da Kelson. Embora já atuasse com foco na solidariedade e nas peculiaridades do territorio com distribuições de cestas básicas e eventos externos, foi através do Letramento Racial no Coletivo Enegreci que Walmyr passa a participar de movimentos políticos racializados, como o Movimento Kizomba e se filia ao Movimento Negro Unificado, chegando a ocupar a posição de Coordenador Estadual.
O Movimento Negro Unificado (MNU) é um grupo de ativismo político, cultural e social que nasce em 1978, na ditadura militar, após uma série de episódios racistas na cidade de São Paulo. O movimento tem como principal luta a defesa do povo negro nos aspectos políticos, sociais, culturais e econômicos e atualmente representa uma das mais relevantes trajetórias do movimento negro no Brasil.
Horta Maria Angú: A (in)Segurança Alimentar na Favela
Durante a pandemia da COVID-19 e o isolamento social, uma das práticas adotadas pelo historiador foi o cultivo de plantas e alimentícios, o que o levou a questionar novamente o cenário da alimentação nas comunidades: “A favela não tem segurança alimentar, vivemos um nutricídio, uma desertificação alimentar. Era necessário levar essa experiência de estar plantando temperos e hortaliças para que esse movimento seja catalisador de outras iniciativas”, conta.
No auge da pandemia, com a queda generalizada de renda nas favelas e o recorde de desemprego, a falta de alimentos impactou diversos moradores. A horta Maria Angu foi uma iniciativa do Coletivo João de Barro e dos movimentos sociais ligados às universidades que uniram forças para disputar um edital interno da PUC-Rio e financiar a construção dessa horta que nasce da urgência de sanar os problemas causados pela insegurança alimentar.
Walmyr relata que identificar a fragilidade da Segurança Alimentar na favela, é identificar as consequências do racismo estrutural e ambiental presentes nas decisões dos governantes: “A favela é refém das escolhas do Estado, que escolhe não fazer o saneamento básico, que escolhe não fazer uma coleta de lixo adequada, escolhe não despoluir a Baía de Guanabara, que afeta diretamente a Maré. São as escolhas do Estado para criminalizar determinados territórios pela ausência de políticas públicas. Estamos aqui no território preto, favelado e periférico. Vivemos a consequência do racismo estrutural que se deflagra no racismo ambiental”, revela.
Apesar dos desafios políticos e estruturais, Walmyr, atualmente cursando o mestrado em Ciência da Sustentabilidade na PUC, continua sua trajetória de incidência nas favelas e na luta urgente para que o poder público reconheça e garanta os direitos da população favelada como cidadãos: “Organizamos mutirões quinzenais, estamos montando hortas dentro da Escola Municipal Gonzaguinha e vamos fornecer uma capacitação ambiental. Estamos otimistas com os passos que temos para dar e ao mesmo tempo nos localizar sempre nas necessidades que temos que esperançar. O que me motiva a continuar é sempre ter esperança e superar os processos de opressão que nós vivemos enquanto povo preto e favelado”, finaliza.