Defensor da volta às aulas presenciais, seguindo protocolos de segurança – com destaque para as atividades ao ar livre – o pediatra Daniel Becker é um defensor da vacinação infantil contra a Covid-19 em qualquer circunstância
Por Luciana Bento – Conexão Saúde, em 25/01/2022 às 07h.
Um dos maiores especialistas em saúde de crianças e adolescentes do país, sanitarista e médico do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Daniel Becker responsabiliza o governo federal pelo atraso na vacinação das crianças e pelo crescimento de grupos anti-vacina em um país que é exemplo mundial em campanhas de imunização. “Não é por causa da volta às aulas que devemos vacinar as crianças. É para protegê-las contra o vírus, já que hoje elas – não vacinadas – são o público mais suscetível à contaminação”, explica. “A escola é um espaço de sociabilização, não apenas de aprendizado de matérias e conteúdos tradicionais”, diz.
“Esta resistência toda à vacina, em um País como o Brasil, é resultado de uma campanha sistemática do Presidente da República”, diz sem rodeios. E completa: “o SUS é reconhecidamente um dos sistemas de saúde que melhor vacinam no mundo e 80% da nossa população é favorável à imunização infantil”.
Nesta entrevista, exclusiva para o boletim Conexão Saúde – De Olho no Corona, ele fala sobre volta às aulas, vacinação infantil, importância de estudos e pesquisas e o impacto cruel da pandemia sobre a saúde das crianças e adolescentes. “Eles sofreram muito com a pandemia, pais estressados e muitas perdas. Houve muitos quadros depressivos neste período”.
A vacina pediátrica finalmente começou a ser aplicada no Brasil. É uma boa notícia?
É uma ótima notícia! Ela é importante para proteger nossas crianças, que atualmente são o grupo mais vulnerável em relação à Covid.
Havia a expectativa de que ela chegasse logo, mas o governo federal protelou o máximo que pode, com esta consulta e audiência pública ridículas, que não têm o menor sentido.
Vacinar ou não é uma decisão técnica, tomada por epidemiologistas, infectologistas, pediatras, especialistas na área. Mas não faz mais nada, a não ser obedecer ao seu chefe, que resolveu ser contra a vacina infantil.
Felizmente as crianças não desenvolvem casos graves, em geral. Mas mesmos alguns poucos casos precisam ser evitados, este é o objetivo de qualquer vacina. E ainda assim, a Covid é a doença infecciosa que mais matou e hospitalizou crianças. Então não há dúvida de que a vacinação é muito necessária.
Pessoas que são contra a vacinação de crianças dizem que os imunizantes são recentes e que não foram testados o suficiente, correndo riscos de efeitos colaterais graves. Qual a sua avaliação sobre isso?
Esta resistência toda à vacina, em um País como o Brasil, é resultado da campanha sistemática do Presidente da República e do seu grupo, que vive de teorias conspiratórias, radicalismos e extremismos.
Aqui temos uma longa tradição de vacinação em massa, o SUS é reconhecidamente um dos sistemas de saúde que melhor vacinam no mundo e 80% da nossa população é favorável à imunização infantil.
Sobre esta polêmica entre testar ou não, isso é bobagem. A vacina é recente, mas não é experimental. Ela passou pelas três fases fundamentais de testes e está na fase 4, que é a que todos os medicamentos do mundo estão continuamente, é a fase pós-marketing, quando ela já é comercializada. A partir daí milhares e milhares de pessoas passam a usar e sintomas raros podem surgir.
A vacina já foi aplicada em mais de 10 milhões de crianças com efeitos extremamente leves. Houve alguns efeitos mais sérios, como da miocardite, mas foram apenas 12 casos e todos se recuperaram bem. Não é uma vacina experimental. É uma vacina efetiva e segura.
O Ministério orienta os pais a buscarem recomendação médica antes de imunizar seus filhos contra a Covid-19. Do ponto de vista médico, esta consulta é necessária?
Pais devem consultar o pediatra para suas crianças periodicamente, apenas isso. Não é necessária uma consulta ao pediatra para saber se seu filho deve ser vacinado contra a Covis. Se ela é uma criança saudável, não tem contraindicação para outras vacinas, como imunodeficiência, não há nenhum motivo para não vacinar.
O senhor é favorável ao passaporte da vacina para a volta às aulas de crianças e adolescentes?
Passaporte de vacina é algo polêmico para se pedir na escola. Se a criança tem direito à vacina, garantido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), ela também tem garantido o direito de estudar. Então a escola não pode impedir a criança de frequência escolar, isso é altamente polêmico.
Algumas escolas privadas estão exigindo o passaporte vacinal, isso é bom, mas é um assunto muito polêmico. Acho válido convencer as pessoas pela educação antes de partir para um condicionamento ou uma exigência como esta.
Mas será possível vacinar em massa as crianças brasileiras antes da volta às aulas? Seria um risco ou irresponsabilidade elas retornarem às escolas sem estarem vacinadas?
A escola não é apenas um local de aprendizado formal, é muito mais que isso. É o espaço público essencial da criança, onde ela desenvolve habilidades fundamentais pra vida, aprende a se comunicar, a negociar, a brincar, a colaborar… Onde ela estabelece relações especiais, com professores, com amigos.
Fora que para muitas crianças é também um espaço de segurança alimentar, onde elas fazem suas principais refeições, e um elo da cadeia de proteção social contra abusos e violência.
O Brasil cometeu um crime de negligência contra a infância ao deixar tudo aberto e só fechar a escola. Abrir escolas não aumentaria a transmissão. A verdade é que a gente simplesmente não trabalhou esta questão.
Escolas com protocolos adequados de ventilação, uso de áreas externas, uso de máscaras pelos professores, são seguras mesmo antes da vacinação. Com professores e adolescentes vacinados, a volta às aulas é muito mais segura mesmo que as crianças não sejam vacinadas a tempo.
A Fiocruz está coordenando um estudo na Maré onde inclui a contaminação de crianças e como a doença se desenvolve sobre este grupo. Qual a importância de estudos como este? São muito específicos sobre uma população ou podem servir de referência para outros territórios e países?
O estudo da Maré é fundamental tanto em relação à contaminação quanto em relação aos efeitos da vacina em crianças. Ela é muito importante, as pesquisas orientam todas as medidas epidemiológicas, foi graças a elas que a gente conseguiu desenvolver vacinas, estudar o comportamento do vírus e a importância das medidas de mitigação de transmissão.
E há poucas pesquisas populacionais, a maior parte foi sobre remédios e vacinas, então ela tem uma importância capital pra gente entender o comportamento do vírus e os efeitos das medidas em populações mais vulneráveis, com especificidades próprias.
Qual a sua avaliação sobre o impacto psicológico e emocional da pandemia de Covid-19 sobre crianças e adolescentes?
Sobretudo os primeiros meses da pandemia foram muito impactantes pras crianças, um período em que as pessoas ficaram mais confinadas em casa, com muitos fatores de estresse.
Foram muitos meses sem acesso a direitos fundamentais ao bem-estar, como o contato com a natureza, ar livre, ambientes externos, a própria cidade. Elas ficaram trancadas em casa com pais extremamente sobrecarregados, tensos, super atarefados, em home office, cheios de medo, vivendo perdas terríveis, pessoais, financeiras, de amigos, de parentes, de pais e mães – que vêm a ser os avós das crianças…
E quem estava trabalhando presencialmente estava exposto ao vírus em um momento de muitas dúvidas, em que ninguém sabia nada direito sobre as consequências, sem vacina…
Estes fatores de estresse pros pais fizeram aumentar violência doméstica e a tensão no cotidiano. O confinamento também gerou excesso de telas, muitas crianças ficaram horas e horas vendo TV e celular, o que faz muito mal à saúde delas. Muitas ficaram exiladas de seus avós e amigos, do contato social, especialmente a falta da escola. Tudo isso foi muito impactante pras crianças e adolescentes.
Elas tiveram muitos sintomas emocionais e psicossomáticos. Dores abdominais e de cabeça, retenção urinária e de fezes, distúrbios de apetite e de comportamento, hiperatividade, distração, excesso de introspecção… Os adolescentes em particular sofreram muito, com afastamento dos pais, quadros depressivos e muito sérios de saúde mental.
Por isso é muito importante levá-los para a natureza, para o ar livre, para a rua, para a praça. Espaço aberto para crianças é muito importante. Idosos quando ficam confinados desenvolvem quadros de alucinação e com criança a mesma coisa. Ela não consegue ser feliz, desenvolver seu bem-estar trancada em casa.