Dados apontam que diferenças no atendimentos e na realização de procedimentos médicos dependem da cor da pele da paciente
Por Samara Oliveira e Teresa Santos
Por definição, racismo estrutural é aquele impregnado dentro da própria estrutura social, e, assim, seria considerado como “normal” pela sociedade. Essa “normalidade” atinge quem não é etnicamente branco desde o processo de nascimento — isso é o que revela o dossiê Mulheres Negras e Justiça Reprodutiva 2020-2021, da ONG Criola. No Brasil, se 37,3% das mulheres brancas recebem medicamento para alívio da dor no parto (analgesia epidural), entre as negras essa percentual cai para 27%. São elas, também, que são submetidas mais frequentemente a manobras desnecessárias para acelerar o trabalho de parto: 38,4%, contra 34% das mulheres brancas.
Dados obtidos pela associação de jornalismo de dados Gênero e Número com o Ministério da Saúde via Lei de Acesso à Informação apontam que, entre 2008 e 2017, a cada 100 mil mulheres pretas que deram entrada numa unidade de saúde para parir, 22 morreram. Os números retratam a maior taxa de mortalidade materna por etnia, o dobro em relação às gestantes brancas, que morrem 11 a cada 100 mil internações por parto.
A violência obstétrica é uma realidade para a mulher que vê negados ou violados seus direitos ao longo da gestação ou parto. Direito à analgesia no parto (alívio da dor), consultas e atenção pré-natal e direito a acompanhante no parto são alguns deles — muitos desrespeitados e ignorados quando a gestante/parturiente é negra. Segundo dados de 2020 da Secretaria Municipal de Saúde, enquanto mais de 84% das mulheres brancas tiveram acesso ao pré-natal, enquanto a taxa entre as mulheres negras foi de 73%.
Sob o ponto de vista legislativo, é possível dizer que o Estado reconhece o racismo estrutural na sociedade brasileira, inclusive no acesso à saúde. Um indicador é a elaboração da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN) instituída em 2009. No entanto, dados levantados pela Gênero e Número apontam que, transcorrida uma década, somente 28% dos municípios havia posto a política em prática.
Busca por atendimento digno
Apesar de não apontar diretamente como um problema enfrentado por seu gênero e etnia, a comerciante Jô – que prefere ser identificada pelas pelo apelido -, de 42 anos, moradora da Nova Holanda é uma das mulheres negras que personificam os dados. Mãe solo de dois filhos, sendo um deles com transtorno autista, Jô utiliza a Clínica da Família do seu território tanto para assistência à saúde como para conseguir os remédios específicos do seu filho.
“Hoje em dia, para conseguir um bom atendimento, temos que ter algum conhecimento. Estou há uma semana com estômago ruim e nunca tem médico para me atender. Ou tem um ou tem outro sobrecarregado, aí você tem que marcar pra semana que vem… até lá já morri porque a gastrite quando ataca, sabe como é, né? Isso causa indignação. Fora quando não consigo pegar os remédios para o meu filho, ele toma quatro e eu acabo tendo que comprar”, contou.
A comerciante ressalta também que mesmo quando vai a outra unidade de saúde fora do conjunto de favelas da Maré é orientada a voltar às clínicas ou postos da sua região para ser atendida lá. Entre protocolos de atendimento e ausências, Jô se torna mais uma mulher negra que não consegue acesso a um direito básico previsto na constituição.
Sistema de poder
Segundo a pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz) Roberta Gondim, essa diferença é resultado de uma produção histórica, política e social: “As desigualdades são formas de expressão de uma estrutura racista que foi historicamente construída. O racismo é um sistema de poder, uma estrutura política e social. O corpo negro é lido como não tendo a mesma legitimidade enquanto humano que o corpo branco; logo, a saúde sobre ele é desigual.”
Além de Jô, a fiscal de loja Jaqueline Conceição, de 50 anos, mulher negra e também moradora da Nova Holanda, tem a mesma reclamação quando o assunto é seu acesso à saúde. Além da falta de médicos, Jaqueline reclama do atendimento oferecido na unidade em que ela é paciente e do descaso que enfrenta.
Há cerca de um ano, Conceição realizou uma mamografia e um exame de raio-x no pé. No entanto, a fiscal não conseguiu que um médico visse o resultado dos exames. “Queria conseguir fazer um check-up, saber como estou. Eu mostro meus exames e sempre ouço que não tem como olhar, que tem que agendar. Também estava há quase um ano fazendo tratamento com dentista, de repente pararam de me chamar. Me tiraram por conta própria e eu nem fui comunicada de nada”, reclama.
A filha de Jaqueline, uma menina negra de apenas três anos, também já sente o impacto desse contexto. Recentemente, bolinhas vermelhas começaram a surgir pelo corpo da pequena aparentando ser uma reação alérgica. Com a constante dificuldade de ser atendida, Jaqueline teme que a filha também não receba um diagnóstico para seu problema de saúde.
Mais dados: violência obstetrícia
Uma mulher sofre violência obstétrica quando passa por situações de violação de direitos ao longo da gestação ou parto. Não ter acesso à analgesia no parto (alívio da dor), ter menos consultas pré-natais ou ter uma atenção pré-natal inadequada, não ter seu direito a acompanhante no parto respeitado, tudo isso são exemplos de violência obstétrica.
Se nos aproximamos ainda mais da nossa realidade, observando, por exemplo, a cidade do Rio de Janeiro vemos que, segundo dados da Secretaria Municipal de Saúde de 2020, enquanto mais de 84% das mulheres brancas tiveram acesso ao pré-natal, a taxa entre as mulheres negras foi de 73%.
O que é raça?
Biologicamente, não existem “raças” humanas. O conceito de raça é uma construção histórico-social, que resultou em desvantagens para o não branco dentro da sociedade — cruel e particularmente para os negros. A questão da raça se entrecruza e é potencializada por outros aspectos, como gênero (feminino ou masculino), origem (de onde viemos) e classe (o quanto temos), e o resultado é a fragilização e vitimização de quem é discriminado sob esses aspectos e oprimido por todos. “Dizemos que a mulher negra está na base da pirâmide social”, explicou Roberta Gondim.
Para a pesquisadora, é possível reverter este cenário, mas a mudança precisa partir da própria sociedade, em uma luta tanto de indivíduos brancos como negros, cada um do seu lugar social: “Por um lado, precisamos de políticas públicas, por outro, de mobilização social, de pressão social.”
Roberta lembra que “as mulheres negras têm um papel importante nos espaços da saúde, tanto na linha de frente da atenção, como também na gestão e na formulação das políticas. É preciso que este grupo seja respeitado em seus saberes e que exercite uma gama de recursos de poder, entre eles, econômicos, políticos, epistêmicos (isto é, o poder do saber) e decisórios. Nesse processo, é importante a participação efetiva da parte branca da sociedade, porém o protagonismo é negro”.