Enquanto políticas de privatização avançam no setor de saneamento, moradores de favela ainda acreditam que só quem paga por água pode cobrar um serviço de qualidade.
Maré de Notícias #118
Reportagem: Breno Souza e Ruth Osório
Edição: Fred Di Giacomo
Por data_labe
Não basta coronavírus, crise econômica ou dinheiro na cueca do senador. O ano de 2020 ainda nos trouxe um tsunami em relação ao abastecimento de água. Logo nos primeiros meses, a água distribuída pela Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (CEDAE) chegou à torneira dos moradores com coloração duvidosa e cheiro e gosto muito ruins.
Em seguida, com a covid-19, os velhos problemas de abastecimento de água nas periferias ganharam notoriedade, pois, sem acesso à água, não é possível garantir o básico na prevenção do vírus: lavar as mãos.
Para completar, entre medidas de emergência sanitária, jateamento de ruas, promessas de abastecimento em áreas críticas e escândalos de desvios de verba em hospitais de campanha, o Novo Marco do Saneamento Básico foi sancionado pelo Presidente Jair Bolsonaro, e o processo de privatização da CEDAE, no Rio, avançou.
Dentro da favela, a situação está longe de ser das melhores: “Aqui onde eu moro com minha família, quem tem bomba é rei. Antigamente, quando não existiam tantas casas, tinha mais água disponível. Agora que a comunidade cresceu muito, os moradores precisam de bomba para encher suas caixas de água”. O relato é de Nayara Santos (22), moradora da região conhecida como Fim do Mundo. Diversas outras comunidades da Maré enfrentam esse mesmo problema. Além disso, ainda há residências sem encanamento de água e moradores sem acesso à água mineral ou filtrada.
Os dados do Censo Populacional da Maré (2019) revelaram que 98,3% da Maré possui rede canalizada de água em casa. É um dado bem próximo da realidade do município: de acordo com o SNIS 2018, 97,41% da população do Rio de Janeiro é atendida por rede de abastecimento de água. O que esses dados não mostram, no entanto, é qual a qualidade dessa água e com que frequência ela chega em uma casa do Complexo da Maré. Em março de 2020, a Ouvidoria Externa da Defensoria Pública do Rio de Janeiro divulgou um relatório com 434 denúncias de falta d’água no Rio em apenas 5 dias. Não é surpresa que a maior parte dessas denúncias venham das favelas, o que mostra que só a existência de uma rede de abastecimento de água não é suficiente.
E quem não paga pode cobrar?
Apesar do número significativo de denúncias, ainda é uma pequena parte da Maré que conhece seus direitos e sabe como denunciar a precariedade do serviço de abastecimento da água. Além da naturalização dessa precariedade, que faz com que o morador se acostume, o fato de não existir uma cobrança pelo serviço na maioria das casas cria um dilema também: se o morador não paga pelo serviço, como é que ele pode reclamar?
No Brasil, duas leis são fundamentais para entender nosso direito à água: a Lei das Águas (n° 9433), de 1997; e a Lei do Saneamento Básico (n° 11.445), de 2011, atualizada pelo Novo Marco Legal do Saneamento. Antes mesmo da Lei das Águas, a cobrança pelo uso da água já era considerada, mas é importante lembrar que a gente não paga pela água (que é de todos), e, sim, pelo tratamento e outros gastos na prestação do serviço. A Lei do Saneamento garante que os serviços de saneamento devem assegurar a sustentabilidade econômica, isso quer dizer que a cobrança pelo uso da água (o sistema tarifário) precisa ser inclusivo e, se for o caso, até não existir.
A forma mais comum de fazer essa cobrança é por meio das tarifas sociais, um tipo de tarifa cujo valor é ajustado de acordo com a realidade do local de cobrança. Através do Decreto 25.438/99, a CEDAE promove a tarifa social para favelas e conjuntos habitacionais. O procedimento hoje é feito nas agências da CEDAE e, para moradores de favela, é necessário levar declaração original da FAPERJ e identidade.
A realidade é que os moradores de favela não são consultados sobre os valores da tarifa e, sequer sabem da sua existência. Essa ausência de informação faz com que muitos moradores não recorram aos seus direitos. De acordo com Ana Lúcia, coordenadora do Observatório Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (ONDAS), seria necessário que a CEDAE traçasse um perfil real das pessoas que deveriam ser incluídas na tarifa social, registrando todos segundo sua faixa de renda. A recomendação da ONU é que as despesas com água não ultrapassem 3% da renda familiar.
Se a universalização do acesso ao Saneamento Básico é a principal diretriz da Lei do Saneamento, o sistema tarifário precisa ser discutido a partir de custo acessível para todos. Para o engenheiro civil e especialista em saneamento, José Stelberto Soares, a reclamação dos moradores de favela, e que são usuários não pagantes, é também parte importante do processo da garantia de direitos: “Para estes casos, existe o chamado subsídio cruzado e a tarifa social. Se não é cobrado, tem que ser admitido, porque saneamento é saúde e é fundamental para a qualidade de vida da população como um todo. Essa questão de não cobrar tem que ser analisada sob a ótica da política pública: ninguém gasta a mesma quantidade de água. Quem tem uma piscina, quem tem um casão, um apartamento, um triplex, vai gastar muito mais do que o sujeito que tem uma casinha ou um barraco. Mais do que preço e tarifa, a questão fundamental é analisar qual é a situação.”
Se você é morador de favela, saiba que você tem o direito e o dever de reclamar dos serviços de saneamento, ainda que você não pague por eles. É dever da prefeitura e das prestadores de serviço garantir o acesso pleno ao saneamento e à informação a toda a população.
Água também é saneamento
Mas onde registrar as queixas de saneamento? As associações de moradores são historicamente locais onde os moradores das favelas vão para buscar informações e procurar soluções para os problemas de saneamento básico de suas ruas. Além disso, há também postos da CEDAE dentro das favelas onde os moradores vão para procurar soluções para os problemas de saneamento em suas comunidades.
A mobilização histórica dos moradores da Maré na luta por direitos básicos garantiu a entrada da água canalizada em muitas comunidades. Como a luta pela direito ao saneamento básico pleno nunca terminou, as novas gerações de moradores estão cada vez mais engajados com as pautas ambientais, unidos aos mais antigos e aos especialistas de diversas áreas, para, juntos, pensarem os rumos do saneamento básico no Complexo da Maré. Um exemplo disso é o Cocôzap, um projeto do data_labe, formado por jovens de diferentes favelas da Maré, que recebe queixas de saneamento básico dos moradores através do número 21 99957-3216. O projeto também tem sido pioneiro na organização de eventos, como o Encontro de Saneamento, que, em 2020, chega à sua terceira edição (virtual, por conta da pandemia) e conta com a parceria do Projeto Maré Verde, da Redes de Desenvolvimento da Maré, e da Casa Fluminense, referência nacional na luta pela redução das desigualdades sociais. Água e esgoto também são alguns dos temas abordados na Carta de Saneamento da Maré de 2020, que foi reformulada desde a sua última versão e está disponibilizada no site das instituições. A Carta é parte da Agenda Rio 2030 da Casa Fluminense e tem por objetivo levar as propostas das comunidades para melhorias de saneamento às mãos dos candidatos e candidatas à prefeitura da cidade este ano. Além disso, a Carta é um importante instrumento de luta por melhores condições de vida e serviços básicos nas favelas.
Reclame aqui!
A CEDAE tem todo um serviço para o recebimento de queixas. Através do site www.cedae.com.br e no telefone de serviço de atendimento ao cliente 0800-28-21-195, os usuários que pagam e os que não pagam pelo serviço da empresa podem reclamar de falta de água, vazamento de água e do vazamento de esgoto. Casos as solicitações não sejam atendidas dentro do prazo previsto, os usuários reclamantes podem entrar em contato com a ouvidoria geral da empresa através do número 0800-031-6032 ou através do e-mail ouvidoriageral@cedae.com.br. Outra alternativa é ir pessoalmente na sede da empresa, na Avenida Presidente Vargas, nº 2655 – Térreo, bairro da Cidade Nova, Rio de Janeiro – RJ.
Confira a primeira reportagem dessa série: Na Maré seca dos anos 80, mulheres de Nova Holanda se organizaram na luta por direitos.