Dança, arte e cultura levada de casa em casa pelos foliões
Elisângela Leite, Hélio Euclides e Jorge Melo
“Hoje é o Dia de Santo Reis, anda meio esquecido, mas é dia da festa de Santo Reis”, assim cantava Tim Maia, a música Festa do Santo Reis, de Marcio Leonardo, para lembrar da manifestação cultural que acontece em 6 de janeiro. A segunda parte da canção fala: “Eles chegam tocando, sanfona e violão. Os pandeiros de fita, carregam sempre na mão”. Um resumo do trabalho feito por foliões que circulam pelo País para não deixar morrer a tradição. No Rio de Janeiro, uma das mais tradicionais está localizada no morro Santa Marta, que em união com outras, como a da Mangueira, forma a Associação das Folias de Reis.
José Henrique Silva é o Mestre Riquinho, que há 50 anos é um dos foliões do Morro Santa Marta. “Meu pai sempre foi folião, começou em Miracema. O mestre faleceu e a folia que era na comunidade do Boogie Woogie, na Ilha do Governador, veio para cá. Meu pai era o Mestre Diniz e me preparou como mestre folião e meu irmão como mestre palhaço. A continuidade também é algo que a família não pode deixar acabar”. Ele acredita que o fim de um grupo de folia, na maioria das vezes, acontece por falta do mestre que não passou o conhecimento para um sucessor. Aqui na Maré, infelizmente a tradição não acontece mais.
De onde vem a tradição das Folia de Reis
A festa relembra os três Reis Magos, Gaspar, Melchior e Baltazar, que viram a estrela de Belém no céu e foram ao encontro de Jesus, que havia nascido. Em cada região do Brasil é comemorado de modo particular. Principalmente no interior do País acontecem os chamados Reisados ou Folias de Reis, festa folclórica que adota formas e expressões locais na música, na dança e nas orações. Essa festa é uma manifestação cultural ligada ao Natal, comemorada desde o século XIX.
Uma das festas culturais mais ricas do folclore brasileiro acontece quando as chamadas “companhias” vão de casa em casa e entoam diversas canções e rezas em homenagem aos três viajantes santificados. Os versos e músicas são acompanhados de violas, violões, sanfonas, pandeiros, triângulos, caixas e instrumentos de corda. A Folia reverencia a bandeira, que é o símbolo da folia. Decorada com figuras que relembram o menino Jesus, feita geralmente de tecido, é enfeitada com fitas e flores de plástico, tecido ou papel, sempre costuradas ou presas com alfinete.
Aqueles que recebem a visita do Reisado em suas casas, que representa a visita dos Reis Magos a Jesus, oferecem alguma comida a seus integrantes, que agradecem ao hospedeiro e seguem para o próximo destino. Outra tradição é no Dia de Reis desfazer as decorações natalinas, guardar os enfeites e desmontar os presépios. O Rio de Janeiro tem um diferencial, realiza folias até o dia 20 de janeiro, Dia de São Sebastião, padroeiro da cidade.
A folia no Santa Marta
No passado, a folia só vivia na favela, agora circula menos, por causa da violência. “Antes saíamos de sábado para domingo, agora nossa opção é só sair de dia, evita sufocos”, conta o mestre. Além do Santa Marta, o grupo visita casas na favela Tavares Bastos, Cidade de Deus, Duque de Caxias e se apresenta na Igreja da Glória. “É um movimento católico, mas visitamos protestantes e umbandistas. Esse ano queremos ir a Angra dos Reis para um evento. O que falta é dinheiro para o transporte. Aguardamos a ajuda da Secretaria Municipal de Cultura”, diz Riquinho.
O grupo do Santa Marta trabalha com 11 crianças, a partir de oito anos, na escolinha de folia. Já os foliões são 30 componentes, mas o normal são 12 integrantes, pois as casas são pequenas e o custo de receber um grande número de pessoas é alto. “Nem todos os foliões são daqui, mas de diversos locais da cidade”, lembra o mestre. Para esse período é necessário o ensaio do grupo, que ocorreu a partir da segunda quinzena de outubro. O grupo é formado por mestre, contramestre, mestre palhaço, bandeireira, matriarca e músicos. Esses componentes são percussionistas, sanfoneiros, bumbeiros, ritmistas e contadores. Para o trabalho burocrático é necessário um presidente, assessor, fiscal e relações públicas. Em média, passam duas horas em cada casa visitada.
O grupo usa dois uniformes: um branco e outro azul. “Quando coloco a roupa, me transformo, peço ajuda do meu pai e da minha avó, que é a madrinha da folia. Começamos a folia aqui no morro no dia 25 de dezembro, às 10 horas. Vamos até 20 de janeiro, encerramos com uma procissão de São Sebastião. No meio do ano entregamos a jornada com o Arremate, que é uma grande festa, quando entregamos a bandeira e fazemos uma celebração”, relata o mestre. Nas paradas nas casas, as pessoas costumam colocar um dinheiro na bandeira, porque é assim que a folia vive. O valor vai de 20 a 200 reais. No ano passado, o grupo conseguiu 1.100 reais, não davam para o começo da festa de meio do ano, o Arremate. Os comerciantes colaboraram com a bebida.
“Uma história que marcou a minha vida foi uma vez que meu pai iria com a folia para a Rocinha. Só que a chuva estava muito forte. Meu pai tirou o chapéu e começou a rezar. Depois de alguns minutos a chuva se foi, não tinha nem poça e nem lixo na rua. Não acredito em coincidência, mas na força dos Reis Magos e de São Sebastião”.
Mangueira, terra do samba e da Folia de Reis
Na Mangueira, quem dá o tom da Folia de Reis é o grupo Sagrada Família. Ele tem como líder Hevalcy Ferreira da Silva, o Mestre Hevalcy, que é folião há quase 30 anos. Ele foi preparado pela avó, que pertencia ao grupo do Mestre Simplício. Ainda menino começou com Mestre Jonas, na Manjedoura da Mangueira. O grupo vai dar início aos trabalhos no dia 24 de dezembro, quando realiza a ceia na própria sede, e depois sobe o morro até o amanhecer. No Dia de Santos Reis, 6 de janeiro, ele se apresenta na Igreja de Nossa Senhora da Ressurreição, em Copacabana, às 17 horas.
O Mestre Hevalcy agora é presidente da Associação de Folia de Reis do Rio de Janeiro (AFRERJ). “A associação é uma iniciativa que fizemos para correr atrás de benefício para todos. Batalhamos para manter viva e o reconhecimento da folia como cultura brasileira. A associação é municipal e já engloba 13 grupos, de Inhoaíba até Santa Marta. Continuar a tradição é uma vitória, pois tiramos do bolso os gastos. Quando estamos na folia temos o sentimento de algo gratificante”.
Eliane Cristina atua há 20 anos na folia e conduz a bandeira. Ela também é do grupo da Mangueira, cujo número de integrantes varia entre 15 e 22 componentes, sendo cinco moradores da favela. “A folia é uma manifestação folclórica de fundo religioso, dentro do catolicismo. Além dos integrantes, já temos meia dúzia de crianças, mas falta continuidade. Infelizmente está morrendo a tradição”.
Ela conta relatos de pessoas que recebem a folia e se dizem abençoados, conseguiram seus objetivos, uma obra na casa, melhora na saúde ou um emprego. “Isso motiva a não parar. Às vezes, é estressante, pois estamos vendo o número de casas sendo reduzido. Muitas pessoas explicam que não têm condição financeira para nos receber, só que não queremos banquete. Não queremos dinheiro, o nosso desejo é entrar nas casas e rezar aos Santos Reis e a São Sebastião”.