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Artigo: Carolina de Jesus e a atualidade que incomoda

Fonte: Museu Afro Brasil

Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada é um livro que retrata de forma precisa a desigualdade no Brasil. O problema é que foi escrito no final dos anos 1950

Por Jorge Melo, em 28/02/2022 às 07h.

“A favela é o quarto de despejo de uma cidade, nós os pobres somos os trastes velhos”. Essa frase cortante, assim como muitas outras com a mesma intensidade, estava num caderno de anotações, tipo diário, de Carolina de Jesus (1914-1977), que com conhecimento de causa, dia após dia, relatava dores e carências, de toda ordem, da vida numa favela. Os registros vão de 15 de julho de 1955 a 1º de janeiro de 1960.

Moradora da Favela do Canindé, na zona sul da capital paulista, Carolina tinha na época que seus registros ficaram conhecidos, 44 anos. Trabalhava como catadora e escrevia em cadernos que recolhia no lixo. Era mineira e vivia em São Paulo desde 1947.

Apesar do pouco estudo, cursou apenas as primeiras séries do Ensino Fundamental, seu texto era elegante, consistente, fluído, direto, eventualmente poético, apesar dos erros de grafia. Seu tesouro consistia em 20 cadernos escolares, onde descrevia, com estilo, o seu dia-a-dia de privações mas sem perder a dignidade e a ternura.

E por que lembrar Maria Carolina de Jesus?

Em 1960 foi lançada a primeira edição de Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada. Sucesso instantâneo. A tiragem inicial, de 10 mil exemplares, esgotou em apenas uma semana. Num primeiro momento, com três edições, o livro vendeu mais de 100 mil exemplares, um feito raro e surpreendente mesmo para os campeões de venda da época, como Jorge Amado. O livro foi traduzido para 13 idiomas e foi vendido em mais de 40 países.

O texto direto, objetivo, áspero sobre a vida de alguém invisível foi um verdadeiro choque. Um Brasil real, pobre e sem beleza; desconhecido e até então silencioso emergia através da literatura, conduzido por uma improvável porta-voz. Ao mesmo tempo em que o país investia na industrialização e sonhava conquistar um lugar entre as maiores economias do mundo.

O responsável por fazer a ligação entre Maria Carolina de Jesus e o Brasil dos escritores, editoras, livrarias e críticos literários foi o jornalista Audálio Dantas (1929-2018), um alagoano há muito radicado em São Paulo, reconhecido pelo bom texto, o bom humor e a preocupação com os problemas sociais do país.
Numa ida à Favela do Canindé para uma reportagem, Audálio teve acesso aos escritos de Carolina: romances, poemas e contos. Mas o que despertou a atenção do jornalista foi o diário. Se surpreendeu e se emocionou com os relatos e decidiu publicar trechos numa reportagem para um jornal e depois numa revista de grande tiragem.

Carolina fez sucesso, ganhou algum dinheiro, comprou uma casa num bairro de classe média, e seguiu escrevendo. Carolina não era uma desconhecida nas redações de jornais de Rio de Janeiro e São Paulo. Um dos seus poemas fora publicado em fevereiro de 1940. Mas suas tentativas de publicar até então tinham fracassado.

Carolina de Jesus. Foto: Arquivo Nacional/Museu Afro Brasil

Muitos consideram Carolina Maria de Jesus precursora de uma Literatura Negra no Brasil. Ou mesmo, uma espécie de ancestral do RAP nacional, ao ser relacionada, por exemplo, à obra do grupo paulista Racionais MCs. Embora instigante não há nessa hipótese nenhum elemento, a não ser os temas, e muitas vezes a crueza das letras de Mano Brown e seus companheiros, que os possa ligar à escritora morta em 1977. Mas não deixa de ser uma hipótese interessante a ser explorada.

Os livros de Carolina Maria de Jesus nunca foram totalmente esquecidos mas viveram tempos de ostracismo. Em 2020, a primeira edição de Quarto de Despejo completou 60 anos e muitos eventos foram programados para comemorar o importante feito realizado por uma escritora negra, ao romper barreiras sociais e culturais nos anos 1960. Quando ainda vigorava o conceito de Democracia Racial, e o Brasil vendia ao mundo uma imagem tão idílica quanto falsa, de que todas as raças conviviam harmonicamente sob o sol, o mar e o som da Bossa Nova.

Em 2021, a editora Companhia das Letras decidiu relançar a obra de Carolina de Jesus com o cuidado que ela merece. Foi constituído um conselho editorial para cuidar da edição dos livros, a partir dos originais dos cadernos da escritora; formado pela filha de Carolina, Vera Eunice de Jesus; a escritora Conceição Evaristo e as pesquisadoras Amanda Crispim, Fernanda Felisberto, Fernanda Miranda e Raffaella Fernandeza.

As comparações dos relatos de Carolina de Jesus com o Brasil de hoje e os debates sobre a obra da escritora, da mesma forma que revelaram para as novas gerações o talento e a força de uma mulher negra, que ia muito além do registro de suas dificuldades, denuncia que, apesar dos avanços, os livros de Carolina evocam uma triste memória e guardam uma incomoda atualidade ao se depararem com temas como racismo, desigualdade e injustiça social.

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