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O reconhecimento da arte como trabalho na visão e vivência de três artistas da Maré

Profissional que trabalha com a criatividade, o artista tem dificuldade de ser visto, até por ele mesmo, como um trabalhador ou trabalhadora

Por Ana Paula Lisboa

O imaginário do trabalho artístico como sendo o fazer da fruição e inspiração, acaba esquecendo do esforço da transpiração e burocracias deste trabalho.

Para os favelados, é ainda mais complexo ver o trabalho artístico como uma possibilidade de sustento e mobilidade social. A publicação Marégrafia identificou que apenas 3% das pessoas que trabalham com arte no território conseguem manter as despesas familiares somente com o subsídio desses trabalhos.

Não foram poucas as vezes em que sambistas e capoeiristas foram chamados de malandros e vagabundos. O preconceito e o racismo alimenta a informalidade e a falta de reconhecimento, principalmente financeira. 

Entrevistamos três trabalhadores da cultura crias da Maré, para saber o que eles pensam sobre os seus trabalhos.

Prestador de serviço 

Eu sou Renato Cafuzo, escritor, ilustrador e designer gráfico. Eu sempre gostei de desenhar e de arte, mas antes de me entender como artista eu já estava procurando trabalho. 

Eu fui fazer o curso de designer porque me dava a oportunidade de estar perto era uma coisa que me daria um emprego, o que era importante pro meu pai, mas ao mesmo tempo tinha a ver com estética e com coisas que eu gostava. No curso eu tive professores que eram ilustradores, e assim eu comecei a ter referenciais de profissionais que trabalhavam com arte. Quando fiz meu primeiro trampo como ilustrador pra um livro eu me vi um artista prestador de serviço.

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O meu primeiro livro, “Moleque Piranha”, foi meio confuso, porque não era eu só como artista plástico, mas como escritor, abriu uma outra caixinha de fazer artístico. Foi o meu primeiro trabalho totalmente autoral. Antes dele, eram trabalhos originais, mas que respondiam a uma demanda. O “Moleque Piranha” foi a primeira vez que eu pensei uma coisa, quis fazer, fui lá e fiz.

Eu não consigo ser artista 100% do tempo, eu sou a parte dos artistas que faz essa dupla função: tenho um trabalho que me assegura uma grana todo mês e ao mesmo tempo toco a minha arte. 

É claro que a minha profissão formal dialoga muito com meu fazer artístico, eu tenho muita sorte por isso. Mas o bônus é que eu não preciso aceitar qualquer trabalho, eu posso escolher fazer coisas que dão o tom do que eu entendo como minha carreira. O problema é o peso da sobrecarga de ter dois (três, quatro, cinco…) trabalhos ao mesmo tempo.

Artista exceção

Eu sou Wallace Lino, sou roteirista, dramaturgo, professor, mas tudo isso está articulado à minha existência, de uma pessoa preta, bixa, atravessada de múltiplas culturas. Eu gosto muito dessa imagem do tempo espiralar, eu acho que ele cabe muito na minha vida.

Minha família tinha uma expectativa de acesso a universidade e do que se espera de tragetória de sucesso de um jovem negro, porque minha mãe é professora. Aos 13 anos ela me colocou num programa de primeiro emprego.

Um dia eu acordei revoltada e falei com a minha mãe: não vou mais trabalhar, você vive falando que a gente tem que ter sucesso e eu não vou conseguir nada lá. 

Ela disse: ok, eu vou te bancar até os 21 anos, mas eu só vou te dar o que vestir e o que comer e você vai se virar de forma honesta.

No dia seguinte, eu passei em frente à Redes [da Maré] e tinha um cartaz de seleção para jovens, tinha bolsa de 200 reais e a partir daí eu virei a garota projeto.

Anos depois nós criamos a Cia Marginal e ganhar a [bolsa de teatro] Myriam Muniz foi um divisor de águas, naquela época a gente tinha um momento político que permitia isso. A gente se tornou parceiro da Redes e a contrapartida era oferecer oficinas de teatro, ali eu me tornei professor. Isso virou uma chave e resolvi fazer vestibular pra Unirio.

Eu percebo que a minha experiência é uma experiência de exceção, porque a outra profissão que eu escolhi pra viver, é ser professor de teatro, então eu estou trabalhando com arte o tempo inteiro. Eu tive momentos difíceis, trabalhando com coisas que eu não gostava, sofri mais porque eu sou bonita (risos). 

Ter passado pela academia e ter tido outras experiências, me fez ver que existe um cenário antes mesmo de você pensar em ser artista e você está dialogando com esse cenário. Ele é machista, misógino, elitista. O apadrinhamento não acontece pra todo mundo, o que é acontece é: eu vou arrombar essa porra!

Sempre na batalha

Eu sou Jessi, uma artista do funk. Tenho 25 anos, mas comecei minha carreira com 16. Eu comecei cantando funk melody, mas pra você fazer sucesso precisa de dinheiro e investimento. Cheguei a fazer algumas músicas, com cinco ou seis clipes, tentando, mas não rolou. Cheguei a alguns lugares, mas não fluiu. Então no funk de putaria eu me encontrei. 

Eu finalmente consegui estourar uma música em 2019, chamada “Amor, que foda foi essa”. Essa música rodou os bailes funk de favela e foi muito mais fácil pra música ser reconhecida por conta dos djs. A gente fez a ação de carimbo, que é quando você carimba e marca a música como o nome do dj ou produtor. Eu fiz muitos carimbos dentro da favela e a música estourou.

Em 2023 eu tive mais de 700 mil streamings no Spotify, em 130 países, mas pra mim ainda não é fácil ter a música reconhecida pelo público, com o meu trabalho. Eu não tenho uma imagem muito forte ainda, mas conhecem a minha voz.

A música é meu principal trabalho hoje, e vou nadando pelo digital, com publicidades, trabalhos como atriz o que mais me chamarem. A gente está sempre na batalha. O meu processo criativo é a vivência, é nas ruas, é fazendo os shows. A gente pega um pouco de tudo que acontece na favela e vai fluindo.

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