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Ensinando a transgredir

Por Alexandre dos Santos em 16/12/2021 às 18h

Topei pela primeira vez com bell hooks (assim mesmo com minúsculas, como ela fazia questão de salientar, para dar ênfase ao conteúdo que ela defendia e não à pessoa em si) por causa da Lauryn Hill. Pois é. Era o fim da dedada de 1990, os Fugees tinham implodido e dos destroços nasceu “The Miseducation of Lauryn Hill” (A deseducação de Lauryn Hill). Até hoje um dos meus álbuns de hip-hop de referência.

Lauryn abriu espaço pro feminismo negro à força pondo as vozes femininas à frente de um mercado machista e misógino (não só nos EUA). Numa entrevista na finada revista Bizz (que eu colecionava), Lauryn dizia que, aos 22 anos, ela só se deu conta de que era “uma mulher negra capaz de qualquer coisa porque bell hooks havia ensinado” isso a ela. Tracy Chapman já tinha me mostrado algo semelhante 10 anos antes, mas eu ainda era muito jovem pra perceber.

Foi assim que bell hooks entrou na minha vida e nunca mais saiu. Numa época em que não havia internet e tampouco livros dela publicados aqui no Brasil.

hooks (na verdade, Gloria Jean Watkins) abriu pra mim, homem branco, uma porta que nunca mais se fechou, a do contato com o feminismo negro, concentrado na importância da identidade, do questionamento da masculinidade (branca e preta), do pós-colonialismo e do feminismo transnacional. Tudo amarrado com o que identificamos hoje como questões de diversidade e interseccionalidade de etnia e gênero.

Foi com ela que aprendi o que era “silenciamento histórico e social”. E tanto Tracy Chapman quanto Lauryn Hill, por exemplo, eram exemplos feministas do que bell hooks chamava de “novos paradigmas culturais”.

Hoje quase tudo dos 30 livros que ela publicou já está disponível em português, inclusive “Ensinando a Transgredir: A Educação como Prática da Liberdade”, de 1994, no qual ela faz um lindo diálogo com o educador pernambucano Paulo Freire.

Obrigado doutora hooks, nesta vida não tenho como pagar o que você me deixou. Mas tenho como retribuir.

Alexandre dos Santos é jornalista e professor de História do Continente Africano no Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio.

Saldo de chuva forte preocupa moradores do Rio para chegada do verão

Capital entrou em estágio de atenção por causa de chuvas nos últimos dias

Por Edu Carvalho, em 16/12/2021 às 11h58

Não deu outra. Bastou dezembro despontar no calendário para que o clima quente chegasse e, com ele, o aumento da quantidade de chuvas no Rio de Janeiro. No último domingo (12), moradores da capital ficaram assustados com os estragos causados. De acordo com o Centro de Operações Rio (COR), a maior parte dos problemas foi causada pela queda de árvores, em grande maioria na região da zona sul. Diversos bolsões de água foram registrados em pontos diferentes da cidade. 

Através das redes sociais, moradores da Maré relataram desespero pelo alagamento de diversas ruas. Além disso, o fornecimento de energia elétrica foi impactado. 

Ainda no domingo, a Defesa Civil disparou 26 sirenes em 13 comunidades. No Morro do Adeus, no Conjunto de Favelas do Alemão, um barranco cedeu e casas ficaram repletas de água e lama. 

Segundo o meteorologista e mestrando do Programa de Pós-Graduação em Meteorologia da UFRJ Bruno Dumas, o verão, que começa 21 de dezembro, “é caracterizada pelo calor e pela elevada umidade relativa do ar, que contribuem para a formação destas pancadas de chuva tão comuns nessa época do ano”. 

Analisando o cenário dos próximos meses, Dumas indica que o Rio deve registrar uma quantidade de chuvas dentro da média histórica no estado para os meses de dezembro, janeiro e fevereiro. “Logo, a tendência para as próximas semanas, e para o verão como um todo, é de que aconteçam novos episódios de pancadas de chuva, no entanto dentro da média histórica”, diz.

Veja abaixo as recomendações do COR

  • Siga sua rotina;
  • Acompanhe a previsão do tempo do Alerta Rio e suas atualizações.
  • Mantenha-se informado através dos meios de comunicação e canais oficiais do COR;
  • Todos os cidadãos devem se cadastrar no serviço de alertas da Defesa Civil via SMS. Basta enviar o CEP de casa para o nº 40199, por mensagem de texto. É gratuito.
  • Baixe o aplicativo do COR, disponível em Android ou iOS:
  • Se necessário, use os telefones de emergência 193 (Corpo de Bombeiros) e 199 (Defesa Civil).

Jovens do projeto Percursos Formativos realizam festival no MAR

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O evento terá rodas de conversa, oficina de moda sustentável, feira de economia criativa, slam, atividades para crianças, além da apresentação do grupo Nosso Samba

Por Redação, em 16/12/2021 às 10h25

Os jovens do “Percursos Formativos”, projeto cultural do Museu de Arte do Rio (MAR), apresentam nos dias 17 e 18 de dezembro uma mostra artística produzida por eles mesmos. O festival “Corre Expresso-Parador” é o resultado de quatro meses de formação cultural. A partir de dados coletados por pesquisas sociais no bairro de Santa Cruz, o grupo idealizou o evento, já que observou a carência que os moradores da região têm para consumir e acessar eventos artísticos. O evento vai contar com rodas de conversa, oficina de moda sustentável, feira de economia criativa, slam, atividades para crianças, além da apresentação do grupo Nosso Samba. A intenção é divulgar nomes de produtores locais, além de oferecer um final de semana voltado para o lazer da população.

Para o morador Isach Costa, Santa Cruz possui pontos de referências culturais, porém a falta de estímulo à cultura é o principal problema que faz as pessoas não conhecerem os locais artísticos do bairro. “Temos alguns pontos de referências que são bem acessíveis, porém o que falta mesmo é o estímulo. Estímulo pela busca da cultura, porque Santa Cruz já é um ponto cultural”, afirma.

Percursos Formativos

Percursos Formativos é um programa do MAR desenvolvido pela Escola do Olhar, que busca inserir jovens oriundos da rede pública de ensino e de regiões periféricas do município do Rio de Janeiro nos eixos da arte e da cultura.

Este ano, a edição do projeto foi voltada para a Zona Oeste do Rio, especificamente, para o bairro de Santa Cruz. No total, 10 jovens foram selecionados e fizeram 144 horas de formação, com aulas teóricas e práticas. Eles passaram por todas as áreas administrativas do Museu como Curadoria, Museologia, Educação, Comunicação e Produção Cultural. A partir disso, desenvolveram, ao final do curso, o festival denominado como “Corre Expresso-Parador”, evento que foi pensado e projetado por intermédio dos conhecimentos obtidos durante as aulas.

Para a coordenadora do projeto, Karen Aquini, o diferencial é que o programa selecionou jovens de um só lugar para dar continuidade e desdobramento dos percurseiros dentro do bairro. “É bem interessante todos os jovens serem de um lugar só, porque isso contribui para se pensar um tipo de atuação e intervenção no próprio bairro, pensando em algo que tenha uma continuidade e não acabe durante esses meses de formação, e sim se desdobre”, afirma.

Santa Cruz

Conhecido como o Bairro Imperial, Santa Cruz foi, por muitos anos, a casa de veraneio dos príncipes regentes europeus. O local era fonte primordial da cultura entre esses povos, que desfrutavam, principalmente, da Fazenda Imperial da região. Além disso, o bairro foi casa dos povos jesuítas, e, na época, oferecia diversos projeto artísticos, sobretudo, musicais, para a população.

Atualmente, o bairro ocupa uma das últimas posições na tabela de classificação do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) dos bairros cariocas. O local é o mais distante da região central do município, e, por isso, é um dos mais marginalizados, uma vez que as políticas públicas são escassas na região.

Segundo o último senso de 2010, o bairro possui mais de 200 mil moradores, espalhados por 123 km2, sendo, assim, considerado o 4° bairro mais povoado de todo o Brasil. No entanto, mesmo com todos os altos dados populacionais, o território enfrenta uma grande carência de cultura e arte, que não é fomentada pelo Estado.

O festival, contudo, veio para mostrar que a cultura existe e resiste nesse território, trazendo artistas locais e promovendo projetos sociais já existentes no bairro. Além de levar as manifestações artísticas à população, o evento quer reconhecer e divulgar os produtores dessa região para os próprios moradores.

O Museu de Arte do Rio

Iniciativa da Prefeitura do Rio em parceria com a Fundação Roberto Marinho, o Museu de Arte do Rio passou a ser gerido pela Organização dos Estados Ibero-americanos (OEI) desde janeiro deste ano, apoiando as programações expositivas e educativas do MAR a partir de um conjunto amplo de atividades para os próximos anos. “A OEI é um organismo internacional de cooperação que tem na cultura, na educação e na ciência os seus mandatos institucionais, desde sua fundação em 1949.

O Museu de Arte do Rio, para a OEI, representa um instrumento de fortalecimento do acesso à cultura, intimamente relacionado com o território, além de contribuir para a formação nas artes, tendo no Rio de Janeiro, por meio da sua história e suas expressões, a matéria-prima para o nosso trabalho”, comenta Raphael Callou, diretor e chefe da representação da OEI no Brasil.

Após o início das atividades em 2021, a OEI e o Instituto Odeon celebraram parceria com o intuito de fortalecer as ações desenvolvidas no museu, conjugando esforços e revigorando o impacto cultural e educativo do MAR, onde o Odeon passa a auxiliar na correalização da programação.

O Museu de Arte do Rio tem o Instituto Cultural Vale como mantenedor, a Equinor como patrocinadora master e a Bradesco Seguros como patrocinadora, todos por meio da Lei Federal de Incentivo à Cultura. A Escola do Olhar conta com o apoio do Itaú, da Machado Meyer Advogados e da Icatu Seguros via Lei Federal de Incentivo à Cultura. Por meio da Lei Municipal de Incentivo à Cultura – Lei do ISS, é também patrocinada pelo Grupo GPS, RIOgaleão, ICTSI Rio Brasil, ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico) e HIG Capital. O Instituto Olga Kos patrocina os recursos de acessibilidade do MAR.

O MAR conta ainda com o apoio do Governo do Estado do Rio de Janeiro e realização da Secretaria Especial de Cultura, Ministério do Turismo e do Governo Federal do Brasil, por meio da Lei Federal de Incentivo à Cultura.

Mais informações em www.museudeartedorio.org.br ou @percursosformativos no Instagram.

É preciso estar vivo para viver: somos da Maré, temos direitos!

Maré de Notícias #131 – dezembro de 2021

Por Shyrlei Rosendo* 

Alguma vez você deixou de ir à escola? A uma consulta médica marcada? Chegou tarde no trabalho por conta de alguma operação policial ou um tiroteio na comunidade onde mora? Pois bem, imagino que sua resposta seja SIM. Então, ao ser perguntado se essa situação tem saída, o que nos diria? Possivelmente NÃO. Mas o que queremos conversar com você é que, sim, pode levar tempo, mas podemos ter o nosso direito à segurança pública — entendido como direito à vida — preservado. Lutamos muito para conquistar nossa casa, nosso emprego, nossos móveis e eletrodomésticos… Não é justo que o direito ao nosso patrimônio e à nossa vida seja violado. Não é justo que não possamos ir à escola, ao posto de saúde, por conta da violência.

Para saber como podemos ter direito à segurança pública em nossa favela, nosso primeiro esforço é conhecer nossos direitos, ou seja, o que pode ou não ser feito em uma abordagem policial, como os policiais devem se comportar durante uma operação, onde eles podem ou não entrar sem mandado judicial. Esse ano, a campanha Somos da Maré. Temos Direitos! vai  abordar isso. O objetivo é orientar o morador com informações básicas sobre como agir quando estiver no meio de uma situação que envolve agentes de segurança pública. Ou seja, conheça seus direitos para reivindicá-los e reconhecer quando eles forem desrespeitados ou ignorados. A polícia cometeu uma violência contra você, um amigo, parente ou vizinho? Saiba como agir sem sentir medo. A campanha auxilia, inclusive, na compreensão sobre a responsabilidade das instituições públicas nessa garantia de direitos.

A Redes da Maré, por exemplo, mantém um plantão com advogados, assistentes sociais e psicólogos para atender moradores que sofrem violências em operações policiais — é só chamar no número de WhatsApp da Redes (21 99924-6462). O Ministério Público (MP) tem um plantão que recebe denúncias de incursões policiais violentas, você sabia? É o MP que tem que fiscalizar se os servidores públicos, incluindo os policiais, estão agindo dentro da legalidade. Você sabia que a Defensoria Pública tem um núcleo especializado para atender a esse tipo de denúncia?

A campanha Somos da Maré. Temos Direitos!  também fala de sonhos; mas o que isso tem a ver com a violência? Percebemos ao longo dos anos que a violência, seja ela causada por uma operação ou um confronto armado, interrompe os sonhos. Vamos explicar melhor. 

Se o seu sonho for ter uma casa própria, por exemplo, para alcançá-lo você precisa de um emprego. E vai que você consegue uma entrevista de emprego bem bacana? A vaga paga um salário maneiro, e com isso você vai conseguir juntar uma grana para realizar esse sonho. E imagina se, no dia da entrevista, tem uma operação policial na comunidade onde você mora? Dificilmente você vai conseguir sair e, mesmo que consiga, vai chegar cansado, estressado, preocupado com a sua casa, com as pessoas que moram com você. E aí, pode ser que você não se saia bem. Ou você pode até já ter arrumado um emprego bacana, mas volta e meia chega atrasado porque não conseguiu sair de casa. 

Sabemos que essas coisas são difíceis de perceber, e as pessoas que não moram em favela têm dificuldade de entender, mas nós sabemos que, de vez em quando, deixamos de fazer coisas importantes por conta da violência. Mas não desista! Porque acreditamos que as coisas podem mudar que queremos mostrar que os moradores da Maré têm sonhos!  

Falo em nome da Redes da Maré, mas, pessoalmente, também acredito que é preciso ESTAR VIVO PARA VIVER! Ou seja, precisamos ter nossas vidas preservadas, nossos direitos garantidos, para que possamos realizar nossos sonhos. E o nosso sonho maior é que a violência não nos impeça de realizá-los. E que os mais de 140 mil moradores das 16 favelas do território sejam respeitados, que possam construir uma Maré de vida, de alegria e de sonhos — possam construir uma realidade melhor para todos!

*Shyrlei Rosendo é mestre em educação pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) e coordenadora do Eixo de Segurança Pública e Acesso à Justiça da Redes da Maré.

É preciso estar vivo para viver

Campanha de mobilização “Somos da Maré Temos Direitos” busca fortalecer o protagonismo da população da Maré na luta pelo direito à vida.

Por Daniele Moura em 15/12/2021 às 13h45

“Estar vivo permite Rogério ver seu sonho de vida virar realidade: ver seus filhos crescerem com saúde e boa educação.” São com frases como esta, junto com fotos de moradores das 16 favelas da Maré, que a terceira edição da campanha “Somos da Maré Temos Direitos” chama a atenção para a temática da Segurança Públicas, sobretudo em atuação das favelas e periferias.

A iniciativa do Eixo de Direito à Segurança Pública e Acesso à Justiça da Redes da Maré tem como objetivo conscientizar os 140 mil moradores de seus direitos básicos, como o direito à vida. Desde a primeira edição em 2012, a campanha revela por meio das percepções dos moradores os impactos da atuação das forças policiais na Maré. São ações permanentes como a divulgação de cartilhas, cartazes, folders e vídeos que trazem maiores entendimentos sobre as violações de direitos cotidianas que acontecem nas operações policiais da Maré, como invasão de casas sem mandados, dano ao patrimônio quando carros e casas são atingidos por tiros, etc.

Lambes da campanha colados nas favelas da Maré. Foto: Douglas Lopes

Desde do último dia 10, Dia Internacional dos Direitos Humanos, a iniciativa está percorrendo as 16 favelas da Maré para entregar, de porta em porta dos quase 50 mil domicílios, as cartilhas informativas sobre o que pode, ou não pode acontecer durante uma operação policial. Além disso também há informações sobre as condições em que essas ações podem acontecer, além de um mapa de toda a rede de apoio e proteção oferecida para violências e violações.

“Qual é o seu sonho?” O resultado dessa pergunta, que foi feita a partir de tendas espalhadas pelo território da Maré foi documentado em vídeo. Para esta população, o que deveria ser um direito básico garantido, como ir à escola, ao posto de saúde ou ao trabalho, circular pela cidade, cursar uma faculdade, conseguir se aposentar ou ter sua casa própria, aparece, na maior parte das falas, como sonho. A violência, seja ela causada por uma operação policial ou um confronto armado está interrompendo sonhos. A luta vira cotidiano e as violações podem colocar tudo a perder em segundos, e os danos são permanentes.


Para enfrentar esse problema a APDF 635, chamada de “ADPF das favelas”, corre em julgamento há dois anos pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Trata-se de uma mobilização liderada pelos movimentos de favelas, de familiares de vítimas da violência de Estado, o partido PSB e demais organizações de direitos humanos para fazer cumprir direitos básicos durante as operações policiais, que só acontecem em determinadas partes da cidade.

Em junho de 2020, a Suprema Corte decidiu pela suspensão das operações policiais no Rio de Janeiro durante o contexto da pandemia, limitando as incursões policiais para os casos excepcionais. A prerrogativa deveria ser alinhada com um comunicado junto ao Ministério Público do Rio de Janeiro. Em números, a decisão foi responsável por diminuir em 34% a letalidade policial, salvando ao menos 100 vidas por mês. Na média, os números atingiram o seu menor índice em 15 anos.

Hoje (15/12), no STF, acontece a sessão decisiva para implementação de um plano de redução da letalidade policial no Estado. Diversas frentes de mobilização de favelas pedem para que seja criado um Observatório Judiciário da Polícia Cidadã. O grupo de trabalho foi prescrito pelo relator da ação, o ministro Edson Fachin, a ser composto por ministros do STF e representantes da sociedade civil.

Um grupo da Redes da Maré está em Brasília para acompanhar o julgamento. Houve também visitas aos gabinetes dos ministros e deputados para a distribuição do material informativo da campanha “Somos da Maré Temos Direitos.”

“Estamos distribuindo material na Maré e em Brasília porque acreditamos que esse diálogo é fundamental entre os poderes judiciário e legislativo com os moradores de favela, que sempre são mais atingidos nessas violações de direitos, sobretudo na Segurança Pública.”

Lidiane Malanquini, uma das coordenadoras do Eixo de Direito à Segurança Pública e Acesso à Justiçada Redes da Maré.

O material está disponível para download no site da Redes da Maré.

Mais de 40% das mulheres condenadas com direito à prisão domiciliar continuaram presas

Levantamento aponta que 1.091 presas em nove estados não deixaram as grades entre 2018 e 2019, apesar de lei prever condição a mães de crianças até 12 anos, gestantes ou responsáveis por pessoas com deficiência.

Por Ponte Jornalismo em 14/12/2021 às 8h12. Reportagem de Jennifer Mendonça

Cerca de 2.493 mulheres que cumprem pena em prisões brasileiras têm direito à prisão domiciliar por serem mães de crianças até 12 anos, gestantes ou responsáveis por pessoas com deficiência, mas 43,8% permaneceram presas, de acordo com levantamento realizado pelo ITTC (Instituto Terra, Trabalho e Cidadania). Os dados são referentes ao período de dezembro de 2018 a dezembro de 2019 e foram obtidos de nove estados que responderam pedidos de Lei de Acesso à Informação enviados às secretarias estaduais de Administração Penitenciária.

Dos 26 estados e o Distrito Federal, foram recebidas respostas de Amapá, Amazonas, Mato Grosso do Sul, Paraná, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro, São Paulo e Sergipe. Apenas os estados de Amapá (76) e Amazonas (26) tiveram 100% do cumprimento do direito à prisão domiciliar para essas mulheres. Paraná (70) e Sergipe (6) não beneficiaram nenhuma em suas unidades prisionais.https://flo.uri.sh/visualisation/8132790/embed#?secret=6pxtI6kB3R

Já as mulheres que foram presas preventivamente (sem prazo definido) e que não foram condenadas representam 30% das que continuaram atrás das grades mesmo tendo esse direito. Isso representa 1.904 das 6.341 presas que têm os requisitos para a prisão domiciliar em 13 unidades federativas que responderam as solicitações do instituto. No período mencionado, 13.142 mulheres estavam em prisão preventiva.

Nessa questão, o instituto recebeu respostas de Amapá, Amazonas, Ceará, Maranhão, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, Paraná, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro, São Paulo e Sergipe. Proporcionalmente ao número de mulheres que têm direito à prisão domiciliar, os estados que mais mantiveram presas foram Sergipe (69,7%), Pernambuco (53,6%), Minas Gerais (35%), São Paulo (28,9%) e Amapá (28,4%).https://flo.uri.sh/visualisation/8132465/embed#?secret=LoAyU0IOp7

Lei 13.769/2018 estabelece condições para que mulheres que são mães, gestantes ou responsáveis por pessoas com deficiência e que sejam sentenciadas ou presas preventivamente possam ter o regime de prisão convertido do fechado para o domiciliar. São elas: não ter cometido crime com violência ou grave ameaça à pessoa; não ter cometido o crime contra seu filho ou dependente; ter cumprido ao menos 1/8 (um oitavo) da pena no regime anterior; ser primária e ter bom comportamento carcerário, comprovado pelo diretor do estabelecimento; não ter integrado organização criminosa.

Para Sofia Fromer Manzalli, pesquisadora do Programa Justiça Sem Muros do ITTC, os resultados demonstram uma dupla penalização às mulheres. “Temos outras pesquisas que falam sobre isso de como os juízes valoram esses processos e o que eles enxergam como maternidade é muito diverso, parte da perspectiva deles, de juízes e juízas brancos, promotores e promotoras brancos, e que muitas presas, por serem mães, algo que deveria protegê-las, é usado contra elas, principalmente em crimes de tráfico de drogas”, explica. “Então, é usado no sentido de ‘ah, essa mulher não tem condições de estar com o filho’, ‘é melhor que ela não esteja porque ela estava traficando’ ou que ela é usuária de drogas e a culpa é dela e argumentos que, na verdade, não têm nada de jurídicos. Mas essa situação excepcionalíssima, que é prevista no HC coletivo do STF e depois virou a lei, que levantam muitas vezes não tem uma previsão exata do que é e os juízes usam ao que lhes convêm, que são juízos morais referentes a essas mulheres numa sociedade patriarcal”.

Leia o levantamento na íntegra Baixar

Um exemplo desse tipo de argumentação ocorreu no caso de Rosângela Melo, 41, mãe de cinco filhos que furtou R$ 21,69 em mercadorias de um mercado em outubro deste ano, como revelou a Ponte. Na época, até ser solta pelo STJ (Superior Tribunal de Justiça), na primeira e na segunda instâncias os magistrados justificaram que a mulher teria “caráter nocivo” por ter furtado outras vezes e por isso deveria permanecer presa. “Ainda a respeito, não se demonstrou a imprescindibilidade da soltura para cuidar das crianças, tarefa igualmente possível aos avós ou outros familiares (cuja inexistência não se cogitou, indicando-se, ao contrário, estar a prole sob os cuidados de sua genitora fls. 39), cabendo salientar haver a própria ré provocado seu afastamento dos menores ao se envolver, em tese, com a prática de novo ilícito”, escreveu o desembargador Julio Caio Farto Salles em sua decisão.

A lei de 2018 entrou em vigor no mesmo ano do caso de Jéssica Monteiro, 27, que estava grávida de nove meses, foi presa por tráfico de drogas. A prisão dela aconteceu em fevereiro daquele ano e, enquanto aguardava a audiência de custódia, entrou em trabalho de parto e teve que ir para o hospital. Depois de dar à luz o filho, Jéssica retornou à prisão por decisão da Justiça. O caso gerou comoção nacional. Dois dias depois, nova decisão concedeu à ela a prisão domiciliar. Na mesma semana, o STF (Supremo Tribunal Federal) decidiu favoravelmente ao habeas corpus coletivo para fazer valer o que o artigo 318 do Código de Processo Penal já previa –  que concede a conversão para o regime domiciliar a mulheres grávidas e mães de crianças até 12 anos que estejam em situação de prisão preventiva. Na época, mais de mil mães assistidas pela Defensoria Pública foram beneficiadas pela determinação.

O levantamento do ITTC também indicou que 17,6% de 74 unidades femininas informaram não ter dados sobre maternidade nos prontuários das mulheres privadas de liberdade.

A pesquisadora também aponta outros dois problemas para as mulheres em situação de prisão: a falta de assistência jurídica e o risco de perder a guarda dos filhos. “A Justiça é muito morosa, porque a Defensoria Pública não consegue dar conta para a quantidade de pessoas que são presas, não é possível ter esse atendimento jurídico para ela, e também, muitas vezes, a mulher fica presa um tempo sem uma atenção específica e fica sem saber o que está acontecendo com seu processo, às vezes tem problema de demora de exame criminológico”, exemplifica. “Quanto menos tempo ela ficar longe dos filhos, mais ela consegue manejar a situação no sentido de que essa mulher vai conseguir se manter perto e cuidar deles. Se ela não está perto e cuidando, significa que outra pessoa vai ter que cuidar, muitas vezes são as avós, mas pode ser que não tenha ninguém da família e essa mãe pode perder a guarda da criança enquanto esse processo se perdurar e romper os vínculos com ela”.

O que dizem os tribunais

Ponte questionou as assessorias dos tribunais dos estados mencionados sobre o cumprimento da Lei 13.769/2018 e aguarda uma resposta.

O TJ de São Paulo informou que “com relação à avaliação do percentual, o TJSP não emite nota sobre questão judicializada e destaca que aos magistrados são garantidas a autonomia e a independência para decidir os processos, tomando como base os documentos juntados aos autos.  Havendo discordância das partes, é assegurada a possibilidade de recurso em segunda instância”. E disse que, “de acordo com dados atualizados da Secretaria de Administração Penitenciária, há atualmente 77 gestantes e 29 lactantes no sistema carcerário”.