Boletim Direito à Segurança Pública na Maré aponta que operações policiais causaram a suspensão de 25 dias de aulas
Lucas Feitoza e Maria Teresa Cruz
As crianças e adolescentes moradoras do Conjunto de Favelas da Maré ficaram quase um mês sem aulas em 2023, por causa das 34 operações policiais realizadas no ano. Os dados estão no 8º Boletim Direito à Segurança Pública na Maré, lançado no dia 14 de junho deste mês.
O levantamento aponta os impactos nos direitos dos moradores da Maré, como saúde, educação e o direito ao lazer. Se considerarmos os 200 dias de aulas previstos por lei, os estudantes da Maré perderam um quarto do semestre no ano passado. A série histórica do boletim, que começou a ser sistematizado em 2016, traz um número alarmante: alunos perderam um ano e meio de estudos por causa de fechamentos de unidades escolares de 2016 a 2023.
A assistente social Aline Regina, que também atua na Redes da Maré, fala do lugar de mulher preta, moradora de favela e mãe solo de uma criança atípica. “Sei o quão árduo, difícil e desafiador é fazer com que nossos filhos possam vivenciar uma infância plena, experimentando da saúde, do brincar, do lazer, da educação e da segurança”, declara.
Ela destaca que, mesmo conhecendo a legislação que deveria garantir os direitos básicos às crianças, essa não é uma realidade na favela.
O sistema de ensino da Maré conta com quatro unidades estaduais e 46 municipais. Em operações policiais, está previsto o acionamento do protocolo Acesso Mais Seguro, que visa proteger não apenas os pais e alunos, como os profissionais da educação. “Além do impacto na aprendizagem, a gente vai ter outros efeitos, como o desemprego, visto que muitas dessas mães não contam com rede de apoio e precisam faltar ao trabalho por causa desses confrontos.”, pondera Aline Regina.
Cotidiano de incertezas
Para Andréia Martins, uma das diretoras da Redes da Maré e integrante do Eixo de Educação, os impactos no processo de ensino e aprendizagem mostrados no boletim são evidentes. “As aulas não são adequadamente repostas, mas a gente não pode se limitar a medir o impacto apenas naquele momento, naquele dia da operação em que não houve aula. Estamos falando de um cotidiano de incertezas e aí não precisa ser tão especialista para entender os impactos, por exemplo, na saúde mental. A sensação permanente de incerteza, de insegurança atrapalha toda uma construção da subjetividade do ser humano. E isso com a infância é muito cruel, né? Porque as crianças não conseguem expressar exatamente o que elas estão sentindo, mas elas dão sinais. Vão adoecendo, mudando o comportamento”, analisa.
Andréia Martins exemplifica esse cenário ao mencionar o livro “Eu devia estar na escola”, uma coletânea de relatos e desenhos feitos por crianças e jovens da Maré em dias de operação, lançado em março deste ano. “A escola deveria ser um lugar como a sua casa, né? Um lugar seguro, um lugar de acolhimento, um lugar de pessoas felizes para que esse ambiente possa ser propício para construção do conhecimento. Mas essa é uma realidade muito distante para os estudantes da Maré. As ilustrações e os recadinhos do livro mostram o quanto essas crianças estão impactadas. E a gente precisa de uma política pública que olhe para essas especificidades”, avalia.
Preocupação mundial
O impacto da violência nas crianças e adolescentes é uma pauta global. Em agenda no Brasil na semana passada, a Representante Especial do Secretário-Geral das Nações Unidas para Proteção Contra Violência, Najat Maalla M’jid, passou pelo Rio de Janeiro e falou sobre a violência armada no ciclo de desenvolvimento de crianças e adolescentes.
Em encontro na Câmara dos Vereadores com jovens líderes de movimentos que atuam pela garantia de direitos de crianças e adolescentes, Najat ouviu mais sobre as preocupações e realidades vividas em territórios de favela, incluindo a falta de segurança pública.
Em entrevista exclusiva para o Maré de Notícias a pediatra ressaltou que garantir direitos é um dever do Estado e que “acho que esse é um momento enorme para o Brasil começar a revisar a forma que lidam com a segurança pública e também o que pode ser feito para garantir que todas as crianças e adolescentes que são deixados para trás estejam sendo incluídos e levados em conta em toda a parte econômica.” pontua. Dra Najat também ressalta que crianças, adolescentes e ativistas jovens devem ser vistos pelos Estados como parte da solução e envolvidos nas tomadas de decisões.
“A falta de acesso e permanência segura nas escolas afeta não só o desenvolvimento das próprias crianças, mas tem impacto econômico negativo para o desenvolvimento de toda a cidade”, declarou em coletiva de imprensa.