Após o engajamento de figuras públicas, o ataque do garimpo a uma aldeia ganhou o noticiário; os relatos dão conta de uma adolescente estuprada e morta, uma criança afogada, além de uma comunidade inteira ameaçada e silenciada
Por Tamyres Matos, em 10/05/2022 às 15h. Editado por Edu Carvalho
Um caso de violência extrema na aldeia Aracaçá, que fica na região de Waikás, na Terra Yanomami, em Roraima, foi denunciado no último dia 25 de abril. De acordo com o presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami e Yek’wana (Condisi-YY), Júnior Hekurari, uma menina de 12 anos foi estuprada até a morte e uma criança se afogou ao ser jogada no rio. Após incursões na região, a Polícia Federal anunciou que ainda não encontrou evidências materiais do crime brutal, mas que as investigações continuam. A situação envolve ameaças, silenciamento e a complexidade de um cotidiano de agressões variadas ao qual as mais diversas etnias indígenas estão submetidas.
De acordo com Ana Paula da Silva, doutora em memória social e professora do Programa de Estudos dos Povos Indígenas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), a escalada de violência está diretamente relacionada ao poder cada vez maior do garimpo ilegal. Na pesquisa “Yanomami sob ataque: garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami e propostas para combatê-lo”, a Hutukara Associação Yanomami aponta que, a partir de 2016, a curva de destruição do garimpo assumiu uma trajetória ascendente e, desde então, tem acumulado taxas cada vez maiores. Nos cálculos da plataforma Mapbiomas, entre 2016 e 2020, o garimpo na Terra Indígena Yanomami (TIY) cresceu nada menos que 3.350%.
“Estima-se que existam mais de 20 mil garimpeiros dentro da TIY, destruindo a floresta, poluindo os rios, levando doenças ao Povo Yanomami, Ye’kuana e outros povos isolados que vivem na região. Por onde passam, os garimpeiros deixam um rastro de destruição – conflitos armados, proliferação de doenças, fome, drogas, prostituição de mulheres e jovens indígenas e mortes. E, mesmo neste cenário, a política do atual governo produz um insistente incentivo e apoio à atividade, apesar do seu caráter ilegal, o que gera a expectativa de regularização da prática”, afirma Ana Paula.
Nem sempre os atentados aos povos indígenas provocam debates que furam as bolhas de grupos específicos que lutam pela defesa dos direitos humanos. No entanto, desde a denúncia de Júnior Hekurari, celebridades como Anitta, Alok e Ludmilla utilizaram a projeção de suas vozes e se juntaram ao coro de ativistas que batalham há anos para que a sociedade tenha ciência da grave situação a que o povo originário do país está submetido. “A floresta está derramando rios de sangue e os garimpeiros se tornaram donos da terra e ameaçam os verdadeiros donos, os povos da floresta, para se manter em silêncio”, publicou Júnior em seu Twitter. O representante dos Yanomami relatou em entrevista à agência Amazônia Real que sofre ameaças de morte desde que o episódio veio à tona.
Desdobramentos da denúncia
Juntamente à Polícia Federal, o Ministério Público Federal (MPF) também investiga o caso. Em entrevista ao site da Amazônia Real, Júnior Hekurari, que participou de uma das incursões da PF, relatou que quando chegou ao local só havia fumaça da aldeia incendiada. Algumas pessoas que vivem na região apareceram e contaram ao ativista indígena sobre a coação sofrida, assim como falaram sobre uma oferta de ouro em troca do silêncio.
A situação repercutiu também entre diversos políticos e autoridades. A ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) Cármen Lúcia cobrou rigor na investigação durante uma abertura de sessão no fim do mês passado: “As mulheres indígenas são massacradas sem que a sociedade e o Estado tomem as providências eficientes para que se chegue à era dos direitos humanos para todos, não como privilégio de parte da sociedade. Não é mais pensável qualquer espécie de parcimônia, tolerância, atraso ou omissão em relação à prática de crimes tão cruéis e gravíssimos”, declarou a ministra.
Júnior Hekurari abordou mais de uma vez o processo de coação sofrido. Até mesmo uma ex-namorada do presidente do Condisi-YY chegou a ser surpreendida com a presença de garimpeiros a sua porta perguntando por Júnior. “Tem áudios me ameaçando, dizendo que perderam a paciência e que ‘não tem como’. E o Rodrigo Cataratas está ameaçando me processar. Disse que eu estou difamando os trabalhadores dele”, contou o líder ao Amazônia Real.
Rodrigo Cataratas é o minerador Rodrigo Martins de Mello, coordenador do Movimento Garimpo Legal (MGL) e pré-candidato a deputado federal pelo PL, partido do presidente Jair Bolsonaro. Depois das denúncias, Rodrigo vem postando em suas redes sociais críticas a Júnior. O minerador afirma que pretende processá-lo e pedir uma indenização para a classe dos garimpeiros. Ele também disse ter cobrado no MPF que o líder indígena “prove as denúncias caluniosas contra os garimpeiros”.
Rodrigo é proprietário da Cataratas Poços Artesianos Ltda, empresa investigada pela Polícia Federal por envolvimento no garimpo ilegal e que teve helicópteros apreendidos por atuação no território Yanomami, em 2021. A região de Waikás já é uma das mais atingidas pela extração ilegal.
O grupo de 24 indígenas Yanomami que havia desaparecido foi localizado, mas o silenciamento imposto é considerado um entrave para a investigação. A Comissão de Direitos Humanos (CDH) do Senado Federal formará um grupo para acompanhar em Roraima o combate ao garimpo ilegal na região, com visita prevista para quinta-feira (12/05).
Visibilidade e democracia
Em 2018, um documento produzido pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), organismo vinculado à CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), buscou explicitar os caminhos da atuação anti-indígena entre membros do Poder Legislativo no Brasil desde 2015 – período do golpe parlamentar que culminou no Impeachment da presidente Dilma Rousseff.
Baseada em dados públicos, a análise demonstra uma convergência evidente entre os setores econômicos que financiam as campanhas e os interesses defendidos pelos parlamentares depois de eleitos, em detrimento dos direitos das populações mais desfavorecidas, a exemplo dos povos indígenas. Os setores que mais atuam contra estes povos são: agronegócio, construção civil, mineração, bancos e armamento.
O trabalho de pesquisa construído pelo Cimi apontou que as violências ruralistas sobre os direitos constitucionais das populações tradicionais atingiram 1.930 procedimentos legislativos em 2 anos – de 2015 a 2017. Esse número é maior que o de 20 anos, que chegou em 1.926 entre 1995 e 2014.
A subjugação institucional se reflete nos mais diversos ataques. “Os dados são claros e evidenciam o genocídio da população indígena, especialmente no governo atual. Silenciamento, omissões, mensagens racistas e destruição das políticas e dos órgãos públicos que deveriam cuidar dos direitos indígenas e socioambientais são marcas da política de extermínio do governo Bolsonaro com relação a essa população”, diz a professora Ana Paula.
A especialista relembrou que, em 2020, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) divulgou um estudo sobre a violência no campo ocorridos no mesmo ano. O levantamento apontou um aumento dos conflitos em 2020, com 2.054 casos – crescimento de 8%, em comparação às ocorrências de 2019 -. Deste total, 1.576 envolveram disputas por terras (aumento de 25% comparado aos números observados no ano anterior) e quase metade desses casos estão relacionados a povos indígenas (656 ocorrências).
“Houve aumento de 75% no número de assassinatos no campo e 1.100% de mortes em decorrência de conflitos. Os estados com os maiores percentuais de conflitos são o Pará (na região Norte) e o Mato Grosso do Sul (no Centro-Oeste)”, relembra a professora.
Há algumas ferramentas que buscam dar visibilidade e denunciar a violência fundiária. A Agência Pública, por exemplo, criou o Mapa dos Conflitos. A ferramenta foca sua análise na Amazônia Legal, região com mais de 5 milhões de km², representando dois terços do país. A área inclui os estados do Amazonas, Roraima, Rondônia, Pará, Amapá, Acre, Tocantins, Mato Grosso e parte do Maranhão. “Na Amazônia Legal se concentram 55% dos conflitos no campo entre 2011 e 2020”, diz o site. Há ainda o trabalho de sites como o De olho nos ruralistas – que destaca 297 terras indígenas invadidas – e o Atlas da Violência, parceria entre o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).