Saiba mais sobre a vivência e os efeitos das atuações no cotidiano dos profissionais à frente do projeto Maré de Direitos no contexto de violência armada
Por Andrezza Paulo(*), em 31/10/2022 às 7h
O Maré de Direitos é o projeto que abre as portas para acolher individualmente e de maneira psicológica e sociojurídica o morador vítima dessas violações. Composto por advogados, psicólogos e assistentes sociais, os profissionais por trás do projeto são vizinhos, filhos, mães que já foram violadas pelo Estado e que sabem o peso do estigma que a favela carrega.
De acordo com o Boletim de Segurança Pública da Maré, em 60% das operações policiais houve denúncias dos moradores de violação de domicílios e em nenhuma operação policial foi identificado o uso de câmera de vídeo, áudio ou GPS. É com base nesse cenário que os profissionais do Maré de Direitos se articulam para incidir na realidade da favela.
Os incômodos vividos como moradores impulsionam a atuação desses agentes locais na busca por políticas públicas eficazes. Mas não é fácil equilibrar o lado técnico e estratégico em meio a tantas violações e em muitos casos, violências com pessoas próximas.
Impacto na vida de cada um
De acordo com a pesquisa realizada pela Casa Fluminense, a população das favelas vive aproximadamente 23 anos a menos que os moradores das áreas nobres do Rio de Janeiro. Os agentes do Maré de Direitos estão à frente do acolhimento da população, mas não se pode esquecer que eles também são impactados por dados como este. “A gente entende que o que estamos fazendo é mais do que necessário, estar a par dessas violações impulsiona para que a gente continue. Mas como mãe e moradora é angustiante, é como se estivéssemos em uma fila de alvos. E nós somos alvos”, destaca Fernanda Viana, Assistente Social que atuou no Maré de Direitos e atual Coordenadora da Casa Preta da Redes da Maré.
Fernanda avalia a semelhança entre os agentes e os moradores atendidos. Embora o atendimento seja individual, a demanda apresenta similaridades e pontos que são discutidos coletivamente, como a frequência de jovens pretos executados em dias de operações policiais. Pesquisa realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostra que das 415 pessoas mortas em intervenção policial no estado, 82,2% eram pretas ou pardas. “Corpos como o meu, preto, ainda estão em busca pela humanidade, pelo direito à vida e mesmo como profissionais não podemos arriscar ter contato com o policial em contexto de violência armada porque ele não reconhece o meu corpo como cidadão, menos ainda como autoridade”, ressalta Fernanda.
A assistente social fala dos desafios por ser moradora: “por mais que sejamos técnicos, nós somos humanos. Atendemos pessoas que cresceram com a gente. É doloroso mas algo precisa ser feito”, conta.
Somos da Maré, temos Direitos
Arthur Viana, 24 anos, coordenador da campanha “Somos da Maré, temos Direitos” recorda as percepções sobre violência armada em uma noite de novembro de 2018: “foi um dos dias em que mais ouvi tiros na minha vida”, contou. Na ocasião estava em vigor a Ação Civil Pública (ACP) que restringia operações policiais na Maré. Naquele dia, por volta das 1h da manhã, deu início a operação que baleou cinco pessoas e deixou três mortos. “Um deles era um garoto que cresceu jogando bola comigo, foi muito doloroso ver a situação da família. Não sentia e continuo não vendo nenhuma diferença entre nós dois”, revela.
À frente das mobilizações, Arthur assume que falar sobre Segurança Pública em contexto de favela sempre será muito sensível para quem cresceu nesses territórios e questiona: “Qual é a justificativa para alguém morrer a facadas em uma operação policial? Ou meu primo Matheus que foi levado dentro da viatura e “morto” no Sumaré quando tinha 14 anos de idade? Tenho um tio e três primos que foram mortos de forma violenta. Isso além da revolta, gera um adoecimento, é doloroso demais ter esse tipo de vivência”, desabafa.
As mortes por intervenção do Estado mais que dobraram, passando de 5 em 2020 para 11 em 2021, de acordo com o Boletim Direito à Segurança Pública na Maré e mesmo com o registro de 11 mortes em 20 dias de operação policial, a Redes da Maré identificou a realização de apenas uma perícia com parâmetros normativos.
Para Arthur, ao mesmo tempo que sente as dores das violações, sua atuação nas campanhas, no acolhimento e nos fóruns de violência contribuem na luta pela garantia de direitos na favela e completa “os processos de mobilização e incidência geram um impacto não só no território em que cresci e continuo residindo, mas também na forma como essa política pública é feita nesse lugar”, destaca.
Liliane Santos, coordenadora do Eixo de Segurança Pública da Redes da Maré diz que o acesso à justiça é o caminho para impactar nas políticas públicas do Rio e destaca o papel da Redes nesse processo. “O Estado reproduz historicamente uma lógica de sucateamento das políticas e os processos de negligência nas favelas. A Redes articula com os órgãos de justiça e outras instituições para construir o que o Estado não se propõe a fazer”, conta.
Em 2017, foi protocolada a ACP da Maré, uma construção coletiva sobre Segurança Pública que determinou o cumprimento de uma série de medidas que previa a redução de danos e riscos durante a atuação dos agentes de segurança pública na favela. De acordo com os dados do Boletim Direito à Segurança Pública, o número de feridos por arma de fogo reduziu em 82% e de homicídios em 43%. A partir da experiência desta ação jurídica, foi requerida a ADPF 635 para cessar a letalidade das operações policiais e proteger a vida da população pobre e negra. “É desafiador. Ora frustrante, ora gratificante. Nunca é sobre um caso específico. É sobre uma população que eu faço parte e a mobilização dessa população convergiu nessas ações jurídicas. Isso me dá esperança de dias melhores”, enfatiza Liliane.
Os agentes lidam diariamente com os conflitos internos e com as questões que envolvem atuar em prol da garantia de direitos e acesso à justiça em contexto de violência armada da população. Embora seja um desafio, os profissionais do Maré de Direitos continuam a traçar estratégias, a abrir as portas para acolher o público e principalmente, a resistir diante das violações em busca de uma nova política de segurança pública que veja a favela com mais humanidade.
O Maré de Direitos atende às quartas-feiras de 14h às 17h no Espaço Normal na Nova Holanda e na Sede da Redes da Maré no Pinheiro. O contato também pode ser feito pelo WhatsApp através do número 21 99924-6462.
(*) Andrezza Paulo é a aluna da primeira turma do Laboratório de Jornalismo do Maré de Notícias.