Conhecido como Boi, mareense conta sua trajetória no território
Por Hélio Euclides, em 05/05/2022 às 07h. Editado por Edu Carvalho
Na vida, ser um líder é uma qualidade despertada em algumas pessoas, com objetivo de mobilizar seja um beco, viela, rua, bairro e por aí vai. Na Maré, explode a quantidade de líderes reunidos por metro quadrado, geralmente com intuito de transformação coletiva das realidades. Um deles é Sebastião Lessa, de 62 anos, conhecido como Boi, cria da Vila do João. É ele quem reina dentro das quatro linhas do campo, motivando crianças e veteranos na construção de sonhos na favela. Nesta reportagem, ele conta sua trajetória para os leitores do Maré de Notícias, em depoimento ao jornalista Hélio Euclides. Confira abaixo:
Nasci no bairro do Riachuelo, mas a mudança de vida veio em 1964, quando tinha quatro anos. Minha família passou por uma remoção, com a justificativa da ampliação da Avenida Marechal Rondon. Os vizinhos foram divididos, uns ficaram na Vila Kennedy, outros na Praia de Ramos e nós fomos assentados na Nova Holanda. Lembro que a ação autoritária foi a mando do então governador do Estado da Guanabara, Carlos Lacerda. Na Maré, a primeira imagem da qual me lembro foi a de abrir a janela dos fundos do duplex e ver o sol.
Tínhamos pouca água que com o tempo foi minguando mais ainda. Ainda não havia palafitas, só o chiqueiro. Eu entrava na água, via o pé de tão clara que eram as águas. Com o coador de macarrão, eu pegava sardinha. Numa família de seis filhos, a vida não era fácil, pois meu pai largou a minha mãe e as coisas ficaram feias. Sendo assim, éramos os mais pobres da rua.
Estudei na Praia de Ramos, na Escola Armando de Salles Oliveira e, com oito anos, ia a pé num sol escaldante. Estudante não tinha direito à gratuidade e se pegasse o ônibus sem dinheiro era levado para o posto policial do Parque União. Tive que parar de estudar, não tinha dinheiro para pagar a caixa escolar, não tinha direito ao lanche. O principal motivo era ajudar na alimentação dos irmãos. Eu tomei conta do estacionamento do Bob’s, onde hoje é um restaurante popular. Quando saí entrou o queridíssimo Jorge Bob’s (Jorge Geraldo), que ficou anos nesse serviço. Há uns dez anos voltei à escola e chorei, pois lá foi o começo da vida.
Era uma infância sofredora para muitos. Em meados dos anos 1960, quando passavam na Avenida Brasil, pista de subida nos quartéis do Depósito da Aeronáutica e no antigo Regimento de Carros de Combate, perto da Escola Bahia, a partir das 19h, era possível ver uma fila de crianças e adultos para pegar sobras de comidas. Algumas vezes íamos até a Base Aérea do Galeão para buscar alimento. Hoje precisamos mostrar o quanto é necessário valorizar o momento. É preciso ter respeito por nós, fundadores, que sofremos nas décadas passadas e atravessamos barreiras.
Com 11 anos comecei a ir onde hoje é a Vila do João, isso nos anos 1970. Tinha um vazadouro de lixo da Kibon e da Sousa Cruz, essa última com sede perto da Escola Clotilde Guimarães. Era local de coleta de resíduos e material de demolição. Tudo servia para vender e comprar pão e leite. Para facilitar, pegava carona no caminhão do Seu Irineu, que era pai da Márcia, uma ex-miss Brasil. Já aos 13 anos eu ia mais longe e vendia o material no Caju.
Na minha juventude, a perseguição policial já era grande, fui levado à 21ª Delegacia Policial, em Bonsucesso, por mais de 20 vezes. Era inúmeros motivos, uma vez simplesmente por ser engraxate. Na maioria das ocasiões era por não ser permitido sair à noite, como ir ao baile do Bonsucesso Futebol Clube. Era necessário estar acompanhado por uma pessoa maior de idade e com carteira assinada. Se não acontecesse assim, era desencaminhamento de menores. Ainda tinha a discriminação sofrida por quem morava no duplex. Os moradores da Rua Teixeira Ribeiro tinham outro naipe. Quando namorei uma menina da Teixeira (de Melo) a mãe chamou a polícia. Fomos todos para a delegacia. Não deu em nada, pois não tinha motivo de prisão. No baile do Manoel Virgínio pegavam a gente e levavam para a delegacia para averiguação, depois libertavam e todos voltavam para a festa. Era o tempo das discotecas dos anos 1980.
Aos 19 anos trabalhava até tarde da noite na Transportadora Rota, que ficava entre as ruas 17 de Fevereiro e Flávia Farnese. Sempre ganhava um kit de brinde com produtos de inseticida. Um dia, três policiais me pararam e pegaram um aerosol na minha mochila e me deram um banho com o produto. Quando foram embora, uma senhora me chamou na sua casa e me lavei. Ela disse que eles tinham o projeto de tocar fogo, que por sorte desistiram e passei por um livramento.
Algumas coisas mudaram na Avenida Brasil, onde hoje é o Hotel Stop Time era a Churrascaria Gaúcho. O posto de gasolina da passarela oito era o saci, o mais antigo da redondeza. Sempre lembro de quando quebrou a ponte das palafitas, meu filho caiu e ficou com lama até o ombro. Uma coisa que não esqueço aconteceu em 1982, a remoção de moradores da Favela da Praia de Inhaúma, onde atualmente é a Bento Ribeiro Dantas. Todos foram realocados em Santa Cruz. Isso foi uma covardia. Próximo ao local da extinta favela estava a boate do Chiquinho, que ficava ao lado de onde hoje é a igreja Universal da Rua Praia de Inhaúma. Destacando a liderança da época, lembro do Zé Careca (José Gomes Barbosa), que foi um dos que lutou contra as remoções, pois abriu diálogo com o Ministro do Interior, Mário Andreazza.
O trauma de uma remoção
O programa de moradia Promorar na época do governo militar de João Figueiredo promoveu uma remoção na Maré e assim viemos para a Vila do João, que foi ocupada em outubro de 1982, até pouco tempo era possível ver a placa inaugural, que depois sumiu. Encontramos um local com ruas asfaltadas e até gás de rua. Por outro lado, as pessoas queriam fugir da violência da nova favela, quando o local era conhecido como inferninho colorido, já que cada casa tinha uma cor. Tinha um morador que não se adaptou e trocou as casas por telefone e fusca. A Vila do João teve um bonito carnaval com desfiles, mas por causa de tiroteios, foi o único nesse molde. Nos sentíamos humilhados de ir para um local assim, no qual as casas não eram valorizadas.
Com o passar dos anos, a disputa territorial cessou e hoje posso dizer que aqui é um paraíso. Estamos no meio de três vias importantes, as linhas Vermelha e Amarela e Avenida Brasil. Só fico triste quando vejo alguns jovens no caminho errado, por falta de opção. Infelizmente a juventude não tem caminho de experiência para o mercado de trabalho. São poucas vagas para jovens aprendizes.
O esporte presente na história
Me recordo das aulas de futebol que dei na Vila Olímpica da Maré, de 2000 a 2010, para 5.000 alunos. Ainda tinha as confraternizações com suco e pão com mortadela. Destaco que tinha a carteira assinada pela instituição, isso me ajudou na aposentadoria. Pela minha experiência, acho que o Seu Amaro deveria ter um busto na frente da Vila Olímpica, pois fez muito pela Maré. Em 2005 já falava para os meus alunos que no futuro o Ensino Médio era pouco, que era necessário fazer cursos para complementar. Hoje vivenciamos isso. Eu não queria formar jogadores e sim cidadãos.
Com a saída da Vila Olímpica, fui ajudar o professor Edilson que disputava com seus atletas o campeonato da Confederação Brasileira de Futebol. Falava para eles que era preciso estudar para ser alguma coisa na vida. Nesse período escolhi trabalhar à noite só para continuar dando aula de futebol.
Como liderança, debato sobre as obras que os governantes fazem nas favelas. Não há diálogo, pois somos nós que moramos aqui e que conhecemos nossas necessidades e prioridades. Certa vez uns políticos queriam diminuir o campo da Vila do João, bati o pé e fui conversar com secretário municipal de esporte. Ele concordou com a minha opinião, pois quem sabe o melhor são os moradores.
Na minha trajetória de professor de futebol não posso esquecer de outras lideranças que trabalharam ou ainda trabalham com escolinhas, como Edilson, Bidu, Sidney do Real Maré, Moranguinho, Alexandre Pichetti, Mário, Miro, Zé Luis, Serginho, Paulinho, Barba, Caixote, Willian, Ricardo, Junior, Paim, Giba e o irmão. Muitas vezes os projetos têm alguém de fora que ganha dinheiro e o professor dos alunos vira auxiliar. É preciso acabar com os interventores. Não queremos ganhar com o aluno no clube grande, mas também não desejamos que sejam enganados. Defendo que para evitar que empresários ganhem dinheiro com os nossos atletas era bom ter uma comissão que organizasse as transferências. Os jogadores profissionais como Leo, Dudu, Charles e Duarte poderiam ajudar nisso.
Hoje trabalho com as crianças no campo do Palace, no Conjunto Esperança, às quartas-feiras, de forma gratuita. Já nos sábados organizo as peladas e torneios dos veteranos, no campo da Toca, na Vila dos Pinheiros. O meu prémio é esquecer os meus problemas e quando os meus alunos da Vila Olímpica colocam os seus filhos na minha escolinha, entendo que querem os filhos num lugar bom.
Tento mostrar a esse menino que as coisas não são fáceis, que nem todos se tornam profissionais. Há 35 anos um total de 50% estavam bem de vida no futebol. Era uma alegria jogarem no Bonsucesso, Portuguesa e Olaria. Eram tratados como “Deus” na favela. Hoje as coisas mudaram, a garotada só quer os quatro grandes. Um exemplo que o futebol é um funil são os moradores Picolé e Sapinho, que jogavam muito, mas não tiveram oportunidade.
Uma outra ação de que gosto muito é de levar os alunos para conhecerem outros lugares, como o Maracanã, praias ou shoppings. Mostrar ao garoto que existe um lugar além da favela. Mas também bato na tecla do estudo. Eu me arrependo de não ter cursos, pois tinha a prática, mas perdi oportunidades. Por fim, falo para eles que tenho orgulho de quase ter nascido aqui e de ter criado meus cinco filhos na Maré, me esforçando para que não faltasse o necessário. São todos trabalhadores, me deixando com o sentimento de gratidão desse local chamado Maré.