A celebração da infância, da saúde e da vida aparece com frequência, provando que a data tem um sentido maior, que vai além da distribuição dos saquinhos.
Foto: Patrick Marinho
Andrezza Paulo, Luana Domingos e Millena Ventura (Centro de Artes da Maré e Casa Preta da Maré)
Maré de Notícias #152 – setembro de 2023
“Tia, tá dando doce?” Essa é uma pergunta comum no dia 27 de setembro pelas ruas das 16 favelas da Maré. Crianças e adultos com mochilas nas costas seguem em peregrinação em busca de alguém que esteja “dando doce”. A oferta de saquinhos estampados com a imagem de São Cosme e São Damião e cheios de gostosuras no dia de comemoração dos santos gêmeos é uma prática tradicional carioca, especialmente das favelas e do subúrbio.
Na Maré, a tradição continua viva — mas, segundo relatos, sem a força que antes carregava, o que pode ser explicado pelo alto número de desempregados, o aumento do preço dos doces, os reflexos da pandemia e pela diminuição do número de espaços de religiosidade afro-brasileira na favela.
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Alegria e fé
Entregar doces pode ter os mais variados motivos, uma vez que é uma data comemorativa em diversas religiões. Uma das razões mais comuns para a prática é o cumprimento de promessas para os santos.
Os gêmeos (cujos nomes verdadeiros eram Acta e Passio) eram médicos sírios que atendiam gratuitamente , como sinal de fé em Jesus Cristo. Curavam os enfermos não só com o conhecimento médico como também com orações e milagres.
Devido à perseguição aos cristãos na época, os médicos foram decapitados em 27 de setembro, provavelmente entre os anos 287 e 303. Tanto eles quanto seus três irmãos e sua mãe se tornaram mártires, reverenciados tanto pela Igreja Católica.
São Cosme e São Damião são os patronos dos médicos e farmacêuticos, e sua relação com a medicina fez com as orações daqueles que precisam de bênçãos na saúde sejam direcionadas a eles.
Sincretismo
No Brasil, o culto aos santos foi introduzido pelos portugueses. O sincretismo religioso os relacionou aos Erês na umbanda e ao orixá Ibeji no candomblé. Segundo historiadores, a devoção marcante principalmente no Rio de Janeiro, em Salvador e no Recife vem de dois fatos: um grande número de irmandades católicas e a presença forte de religiões de matrizes africanas nessas cidades.
No candomblé, o mês de setembro é de celebração aos Ibeji, orixás gêmeos que simbolizam o nascimento e a vida. A comemoração se dá por meio de festas com a oferta do tradicional caruru, um prato que tem como ingredientes principais quiabo, camarão seco e azeite de dendê.
Na umbanda, a data tem sentido parecido, pois é o momento da Ibejada, a legião de êres (crianças) que trazem alegria. O Doum é a criança no meio dos santos que aparece em algumas imagens.
Sorriso infantil
Há também aqueles que oferecem doces para manter tradições familiares ou apenas ter o prazer de ver uma criança sorrindo. A celebração da infância, da saúde e da vida aparece com frequência, provando que a data tem um sentido maior, que vai além da distribuição dos saquinhos.
Um dos pontos de entrega de doces na Maré é o do coletivo Papo de Laje. Ricardo Xavier, de 28 anos, é um dos criadores do coletivo e morador da Vila dos Pinheiros. “Todo ano eu entrego doces no Ilê Asé Oyá Inã, onde sou filho de santo, e na porta da minha casa. Com o Coletivo Papo de Laje, distribuímos saquinhos em parceria com projetos que atendem crianças na Maré.”
Cristina Martins, de 51 anos, moradora da Nova Holanda, conta que no passado a data era muito importante para as crianças da favela. “Minha avó distribuía saquinhos todo dia 27 de setembro, e depois essa tradição continuou com a minha mãe.
Ela se lembra da “Praça do Valão com filas quilométricas de crianças para receber o seu doce, que era dado com muito carinho e devoção a Cosme e Damião”.
Ricardo também entende a importância da entrega dos saquinhos para as crianças: “Isso resgata a alegria que diariamente é tirada das nossas crianças. Elas são diretamente impactadas por toda questão política que existe dentro do nosso território. Levar doces para elas é fazer com que elas lembrem que onde moramos é também lugar de alegria e paz.”
Resistência
Ricardo e Cristina são enfáticos ao descrever o preconceito existente quanto à oferta de doces, muitas vezes associada pelos intolerantes como sendo “práticas malignas”. Esse tipo de postura não é pontual: ele vem crescendo em todo o Brasil.
Segundo o Ministério dos Direitos Humanos, nos últimos dois anos houve um aumento de 45% de crimes em razão da religião, sendo praticantes daquelas de matriz africana as maiores vítimas.
Em 2020, o Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro (ISP) contabilizou mais de 1.300 casos notificados de intolerância religiosa. Esse cenário contraria a Constituição Federal, que assegura o direito à fé e ao exercício pleno da religião por todos os brasileiros.
Mesmo que a Lei n° 11.635/2007 tenha instituído nacionalmente o 21 de janeiro como o Dia de Combate à Intolerância Religiosa, poucos avanços aconteceram na prática. Apenas em 2023, o crime de intolerância religiosa foi equiparado ao crime de racismo.
A data presta uma homenagem à memória da Iyalorixá Mãe Gilda, do terreiro Axé Abassá de Ogum, na Bahia. Seus problemas de saúde se agravaram depois de ser física e verbalmente agredida por seguidores da Assembleia de Deus dentro de seu próprio terreiro. Mãe Gilda de Ogum morreu aos 65 anos, vítima de um infarto fulminante .
Racismo religioso
É importante ressaltar que o preconceito contra religiões de matrizes africanas nasce de um lugar diferente daquele onde surgem os que atingem outras religiões. O racismo religioso é aquele contra as religiões que tem raízes africanas e, consequentemente negras, e é caracterizado pela extrema violência.
Ele se manifesta de diferentes formas: agressões a adeptos dessas religiões, depredação de espaços religiosos, negação de direitos, impedimento de regularização de espaços de manifestação de fé e até mesmo prevaricação (quando funcionários do Estado se negam a registrar e investigar denúncias de intolerância religiosa).
A entrega de saquinhos de doces no dia de São Cosme e São Damião se torna, assim, uma prática de resistência cultural e religiosa. O eixo Arte, Cultura, Memórias e Identidades da Redes da Maré vem, desde 2020, realizando atividades no dia 27 de setembro, buscando aumentar o diálogo sobre o tema e fortalecer práticas culturais faveladas.
Em 2021, mais de 50 pessoas se reuniram na Lona Cultural Hebert Vianna, na Nova Maré, para um diálogo inter-religioso sobre racismo e possibilidades de superação, com um encerramento festivo com apresentação de Sabrina Sant’anna em um espetáculo de dança afro como um elemento de celebração da vida.
Como denunciar
Um dos desafios ao combate do racismo religioso é a subnotificação dos casos. Se você foi vítima ou testemunha de algum caso, saiba onde denunciar.
Disque intolerância – OAB/RJ
Telefone: 2272-6150.
email: ccire@oabrj.org.br –
Prefeitura do Rio
WhatsApp: (21) 3460-1746
Central de Atendimento ao Cidadão: 1746
Rua Afonso Cavalcanti, 455 — Cidade Nova
Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (DECRADI)
Telefones: 2333-3629 / 2333-3633 / 98596-7309
Rua do Lavradio, 155 — Centro
Maré de Direitos
Telefone: 99924-6462