Escolas da Maré resgatam o passado da favela para pensar nas futuras gerações
Por Edilana Damasceno em 09/05/2022 às 07h. Editado por Elena Wesley
No Colégio Estadual Professor João Borges de Moraes, na Nova Holanda, falar sobre Educação Ambiental é mais do que pensar num futuro melhor para as próximas gerações; engloba também não deixar morrer o passado da favela. E quem sabe contar essa história de cor é Marcelo Belford, diretor do colégio. Desde 1980, quando ainda era adolescente, Marcelo acompanhava a pauta do saneamento básico na Maré. Hoje, aos 57 anos, ele tenta resgatar esses valores a partir da abordagem da temática ambiental nas salas de aula. “A educação ambiental é a garantia de que teremos uma vivência saudável, feliz e comprometida com o futuro das gerações que virão depois de nós.”
O Artigo 225 da Constituição Federal estabelece que “todos têm o direito ao Meio Ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações” e afirma, ainda nesse trecho, que, para assegurar o acesso de todas as pessoas a esse bem comum, o Estado deve “promover a Educação Ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente”.
Pensar crítico
Apesar das determinações da legislação brasileira, a educação ambiental não é considerada uma prioridade dentro de muitas escolas. A falta de conhecimento traz prejuízos para a sociedade como um todo, e principalmente para quem mora na favela. Os altos índices de poluição gerada por carros e indústrias, o desmatamento, o desperdício de água e os baixos investimentos em tratamento de esgoto trazem consequências sentidas no cotidiano: o calorão que faz no verão, o aumento de problemas respiratórios, a incidência de doenças provocadas por contato com água contaminada ou esgoto, entre outras.
E como a gente interrompe esse ciclo da falta de informação? Para Marcelo Belford, é importante que a educação ambiental seja interdisciplinar, permeando diversos momento do ensino: “Ela tem que caminhar com a matemática, por exemplo. Assim, a gente consegue calcular a diferença no consumo de água de uma família dentro de uma cidade e comparar com aquele das indústrias de bebida.” Marcelo ressalta que esse modelo de ensino funciona somente com base no diálogo, ingrediente fundamental para o bom funcionamento de qualquer escola.
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Marcelo Belford é diretor do Colégio Estadual João Borges de Moraes e um dos responsáveis pela implementação da Educação Ambiental na unidade
Foto: Maria Ribeiro
À medida que o debate ambiental na João Borges se consolidou como parte da rotina da escola, ele cresceu e envolveu mais personagens, como o coletivo Lutas Urbanas Tecnologia e Saneamento (LUTeS). A parceria rendeu frutos, como o curso Saneando, Semeando e Empreendendo: Cidadania e Educação: durante quatro aulas, estudantes e integrantes do LUTeS pensaram estratégias para inserir o tema no cotidiano da população, através de uma linguagem acessível. Uma delas foi o projeto de construir coletivamente, dentro da escola no ano letivo de 2022, um biodigestor — esse equipamento acelera o processo de decomposição da matéria orgânica através da ausência de oxigênio, e é usado para tratar esgoto doméstico e restos de comida. No processo, é produzido um gás que pode ser aproveitado na cozinha.
Marlon Brendo, de 17 anos, é monitor na escola e faz parte da iniciativa. O jovem conta que a experiência transformou sua forma de pensar o meio ambiente. “Assim como gentileza gera gentileza, conscientização gera conscientização.” Marlon acredita que, assim como no colégio, o movimento pelo direito ao saneamento básico deve tomar as conversar por toda a Maré: “A gente está incentivando os alunos a passarem para outras pessoas o que a gente que mora na Maré precisa, e também a ajudarem uns aos outros em relação ao cuidado com nosso ambiente e nosso lugar.”
Coleta seletiva
Para Christiane Lagarto, diretora da Escola Municipal Professor Josué de Castro, educação ambiental se faz com movimento e participação. A ação de tornar o ambiente acadêmico mais verde e consciente começou na pandemia, mas a ideia era um sonho antigo da diretora: “Com o tempo mais livre, eu e a professora Luiza Colonesi começamos a reciclar todos os materiais, de bancos a potes; fizemos vasos e plantamos mudas pela escola.”
Os alunos se interessaram e aderiram ao movimento por meio da jardinagem, disciplina eletiva oferecida pela escola. O aprendizado também é percebido fora da sala de aula. “A gente também faz isso na cozinha e no refeitório. Temos um latão para resíduo de casca de frutas, outro para restos de comida e mais um para lixo seco. Vamos falando conversando.” Quem instrui os alunos sobre o local correto de descarte é Dona Emília que, aos 62 anos, atua de forma voluntária na escola.
Dona Emília é a responsável por orientar os alunos sobre os locais adequados para descarte de resíduos. Foto: Maria Ribeiro
Christiane acredita que, para fazer o debate sobre cuidado com o meio ambiente chegar em mais pessoas, seria preciso uma integração entre comunidade e escola. E não faltam ideias para que isso se torne possível. “Queria que a comunidade enxergasse a escola como um lugar de coleta seletiva, mas para isso é preciso ter estrutura para isso. Também acho que a Prefeitura deveria montar uma logística de recolhimento dos resíduos orgânicos nas escolas e de transporte até um lugar para compostagem.”
Enquanto a estrutura não ganha corpo, o caminho está aberto a quem quiser contribuir com as ações ambientais promovidas pela escola — como é o caso de Dona Emília. A escola segue se reinventando com os recursos que tem à disposição, como a capinagem que não implica no uso de materiais não degradáveis no descarte dos resíduos: “Quando a Comlurb capinava a quadra, o capim era posto em sacos plásticos. Hoje isso não acontece mais; descobri que se o capim for espalhado como um tapete, em dois meses ele se desintegra. Então, eu aqui fiz o meu micromundo”, conta a diretora.
Nem sempre criar micromundos é suficiente para encarar as dificuldades enfrentadas pelas escolas públicas. A diretora da Josué de Castro sente falta de continuidade nas políticas da Prefeitura: “Quando eu comecei, a Prefeitura nos cedeu terra através do projeto Hortas Escolares. Mas o projeto acabou e mantê-lo significa às vezes tirar dinheiro do nosso próprio bolso.”
Não é apenas nas atividades extracurriculares que a direção da escola sofre com a falta de apoio: o Colégio Professor João Borges, apesar de estar funcionando, não possui sequer uma estrutura elétrica adequada que garanta a segurança dos alunos e do espaço em si. Questionada, a Secretaria de Estado de Educação informou que “as providências para a realização dos reparos e efetiva solução do problema de energia do Colégio Estadual João Borges de Moraes, localizado na Maré, já foram tomadas junto à concessionária de serviços de eletricidade. Para isso, foi descentralizada à unidade escolar a verba de R$ 250 mil, e já existe uma empresa contratada para a realização desse serviço e a solução da questão da forma mais rápida possível”.
O diretor Marcelo Belford cita o documentário Utopia e Barbárie (2009), dirigido por Silvio Tendler, para explicar o porquê de ele e da escola continuarem resistindo: “Eles são tantos e nós somos tão poucos; eles são tão fortes e nós somos tão fracos que, muitas das vezes, eu me pergunto por que eu continuo a lutar […] Eu continuo porque estou certo.”
Essa reportagem é resultado de parceria do Maré de Notícias com o data_labe e foi produzida pelo CocôZap, um projeto de mapeamento, incidência e participação cidadã sobre saneamento básico nas favelas.