Em visita à Maré, Carl Hart, um dos maiores especialistas em drogas do planeta, segue sua cruzada contra a estigmatização das substâncias e das pessoas marginalizadas pelo uso
Por Tamyres Matos, em 01/12/2021 às 07h. Editado por Dani Moura
Uma conversa entre adultos sobre as drogas. Essa é a proposta do novo livro do neurocientista estadunidense Carl Hart – “Drogas para adultos”, publicado pela Editora Zahar; autor que esteve em uma reunião na última quinta-feira (25), no galpão do Espaço Normal, na Nova Holanda. Com a presença de Eliana Sousa, diretora da Redes da Maré, Julita Lemgruber, coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Candido Mendes (Cesec), de Lilian Leonel, redutora de danos do Espaço, e de Carl, a roda de conversa foi mediada por Pâmela Carvalho, coordenadora do Eixo “Arte, Cultura, Memórias e Identidades” na Redes da Maré.
Hart se tornou conhecido no mundo inteiro ao propor um novo olhar sobre as drogas. O professor de psicologia e de psiquiatria da Universidade de Columbia estuda o assunto há mais de 30 anos e questiona praticamente todos os conceitos sobre o consumo de drogas. Ele rejeita, por exemplo, o termo “usuário de drogas” limitado ao contexto do vício. “Falamos em ‘usuários de drogas’ como se não fôssemos todos nós. A linguagem é muito poderosa e as drogas são usadas para justificar o exercício da violência contra pessoas que a sociedade prefere marginalizar. E geralmente essas pessoas são negras”, diz.
Nascido em uma periferia de Miami, no estado da Flórida (EUA), Carl começou a questionar a abordagem da utilização de crack pela mídia do seu país logo após iniciar suas pesquisas em 1999. Ele compreendia que poderia ter se tornado um viciado, mas que uma série de oportunidades o conduziram a outro caminho. Suas pesquisas evidenciaram que o problema real da substância derivada da cocaína não era exatamente seu efeito psicoativo. Desde então, o PhD desenvolveu seu trabalho para desconstruir a visão que estigmatiza tanto as drogas, quanto as pessoas em situação de vulnerabilidade social que fazem uso dela.
É essencial desconstruir as bases da “guerra às drogas”. Esse termo é usado no Brasil para evitar a discussão sobre os reais problemas sociais. A maioria das pessoas que consome estas substâncias não são viciadas, se comportam de maneira tão racional quanto qualquer outra pessoa. Todos consomem drogas pela sensação de bem-estar, as drogas são usadas como escape. Então é preciso ter recursos para lidar com as dificuldades enfrentadas pelas pessoas, enfatizar sua humanidade. As pessoas estão sofrendo e precisamos entender como a sociedade pode ajudar, independentemente do uso de drogas. É isso que tem que pautar as ações do poder público.
Carl Hart
Espaço Normal e a redução de danos
O Espaço Normal foi idealizado a partir da ideia de redução de danos. Pensar desta maneira é entender que os efeitos nocivos das substâncias precisam ser minimizados, mas que o proibicionismo não resolve a questão. É assumir que as pessoas vão usar drogas e, por isso, o importante é construir estratégias individuais e coletivas para que elas não mergulhem no contexto do vício. No Espaço, criam-se alternativas para pessoas com uso prejudicial de drogas e familiares; produz-se conhecimento sobre práticas de redução de danos em contextos de violência; promove-se autocuidado e apoio em saúde mental, acolhimento e acompanhamento sócio-jurídico; e são criados e renovados vínculos com a família, amigos e o território.
De acordo com a diretora da Redes da Maré, um dos elementos fundamentais para o início das atividades do Espaço veio de uma indagação lançada pelo célebre neurocientista. “Quando Carl visitou a Maré pela primeira vez – em 2014 -, ele fez uma provocação ao suscitar a necessidade de um envolvimento ainda mais orgânico com as 16 favelas da Maré. Essa ideia da ‘guerra às drogas’ tem a ver com a negligência com uma parcela da população. O Estado investe na crença de que o problema central é o tráfico de drogas”, afirma Eliana, que complementa: “Para combater essa visão, temos uma organização de base por meio da redução de danos. Estamos aprendendo, construindo o projeto desde 2018 com usuários que estão em situação de rua”.
Lilian Leonel é usuária de crack e sua participação no diálogo ajudou a levar uma visão “de dentro” sobre a política de drogas e a marginalização de determinada parcela da população. Redutora de danos, ela também é uma das pessoas atendidas pelo espaço.
“Falar do Espaço Normal é falar de liberdade, de direitos. Esse lugar oferece possibilidades a quem está no fundo do poço. Para que as pessoas possam se alimentar, trabalhar e aprender a usar sua droga. Eu tinha muito medo de ser maltratada, medo da polícia, medo da aproximação das pessoas. Mas aqui passei a ser atendida no médico, consegui entrar num cinema. Afinal de contas, somos gente, independentemente do uso (de drogas).”
Lilian Leonel, redutora de danos do Espaço Normal
Segurança pública para quem?
Quando o assunto é a suposta guerra declarada contra o comércio – e a utilização – de substâncias ilegais, temos o debate mais amplo da política de segurança pública no Brasil. Para o neurocientista, trata-se de uma discussão sobre os corpos que, para a sociedade, precisam ser controlados. “Segurança pública geralmente é uma discussão para assustar a classe média. Esse termo é uma espécie de código que gera um alerta sobre essa parcela da população que acredita que os chamados ‘usuários’ representam perigo e eles ficam cegos para todas as outras cobranças que precisam ser feitas”, aponta.
Carl acredita que a sociedade precisa amadurecer ao encarar esse tema, pois é o debate focado nesse combate ao tráfico que viabiliza o ataque das forças do governo contra a população mais pobre, “como se a droga fosse a responsável pela miséria daquela pessoa”.
“Eu não sou um ‘ex-usuário’ de drogas, sou um usuário atualmente. Somos todos, inclusive aqueles que consomem somente álcool. E por que ninguém me perturba? Porque eu tenho uma vida que me retira desse quadro de vulnerabilidade. Esse é o ponto que insisto no meu trabalho: não é sobre as drogas. O governo é responsável por essa manipulação e muita gente realmente acredita que essa é a questão central. Boa parte da nossa cultura perpetua isso, vilanizando ou desumanizando as pessoas usuárias de drogas. Precisamos combater essa visão.”
Carl Hart, professor de psicologia e de psiquiatria da Universidade de Columbia