Em parceria com o data_labe, a Redes da Maré passa a publicar, a partir desta Edição, uma série especial intitulada Jogo Sujo – uma grande reportagem dividida em três partes, sobre o saneamento básico no Rio de Janeiro
Maré de Notícias #97 – fevereiro de 2019
Por: Equipe do data_labe
Pode parecer estranho, mas nenhuma casa no Complexo da Maré possui esgotamento sanitário. Pelo menos, não, segundo a Lei Nacional de Saneamento Básico, que define tais condições como “infraestruturas e instalações de coleta, transporte, tratamento e disposição final adequados dos esgotos sanitários, desde as ligações prediais até o seu lançamento final no meio ambiente”. Ou seja, no jogo do saneamento básico, a Maré já começa uma casa atrás. Na prática, a situação sanitária do complexo de favelas está bem distante do que diz a Lei.
Dona Tereza, moradora da Nova Holanda, vive próxima ao valão, na Rua Sete, há 45 anos. “Quando o prefeito Marcelo Crivella esteve, aqui, na comunidade, eu encontrei com ele na Clínica da Família, que ele veio inaugurar, e falei que estavam inaugurando um centro médico, mas deixando um centro de infectologia na frente, que é o lixo da Comlurb”, conta. “Ali é lugar de lixo, mas se fizessem obras organizadas, que dessem vazão para retirar esse lixo de perto da moradia de pessoas, não teríamos tantos ratos, moscas e pombos transmitindo doenças”, acredita.
Ana Lucia[em1] de Brito, professora do Programa de Pós-Graduação em Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro[em2] (Prourb/UFRJ), explica que, em 2007, foi assinado um Termo de Reconhecimento Recíproco de Direitos e Obrigações entre o Estado, a Prefeitura e a Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (Cedae). O Termo definia que a Cedae ficaria responsável pelo abastecimento de água em todo o município do Rio, incluindo as favelas, enquanto a Prefeitura seria responsável pelo tratamento sanitário apenas das favelas. “Esse Termo não tem um valor jurídico real, porque na época já existia uma Lei, no Brasil, sobre saneamento. Essa Lei determinava como deveriam ser os contratos, as relações e os acordos, e esse Termo do Rio de Janeiro não segue o modelo da Lei Nacional”, revela a professora da UFRJ.
Para complicar ainda mais, devido ao não cumprimento de acordos da Prefeitura, ainda em 2007, foi feito um novo acordo em relação às favelas do Rio, mudando as regras do jogo: a Cedae atuaria no tratamento de esgoto em favelas com UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) e a Prefeitura, nas favelas sem UPPs. “Em 2011, no Governo do Eduardo Paes, foi instaurado o Morar Carioca, um programa de urbanização de favelas, que não foi para frente. Foi dentro do Morar Carioca que fizeram esse acordo em que, aos poucos, o esgotamento das favelas iria para a Cedae. Mas como não teve nenhuma obra do Morar Carioca, isso não aconteceu”, explica Ana Lúcia.
Com essa sobreposição de acordos, até mesmo para se entender “quem é quem” na gestão do saneamento na cidade, fica confuso. Em um pedido de esclarecimento via Lei de Acesso à Informação (LAI), a reportagem recebeu a seguinte resposta da Prefeitura: “A comunidade da Maré é uma das que possuem UPP instalada, de modo que as informações relativas ao esgotamento sanitário devem ser dirigidas à Cedae”. Oficialmente, a Prefeitura do Rio de Janeiro é a responsável pela gestão das redes de águas pluviais e esgoto nas favelas que não possuem UPPs. A questão é que o Complexo da Maré não tem Unidade de Polícia Pacificadora, como é possível conferir no site oficial da Polícia Militar e por qualquer cidadão que caminha pelo território.
Um desafio em curso
Uma das maiores estações de tratamento de esgoto da América Latina, a ETE Alegria, foi construída no território vizinho à Maré, no Bairro do Caju. Seria uma boa notícia, mas não é. A estação não atende nenhum morador do Complexo, porque a estrutura do esgoto da Maré não tem ligação com a estação de tratamento.
O Programa de Despoluição da Baía de Guanabara (PDBG), assinado em 1991, previa essa ligação do sistema de esgotamento da Maré com a Estação Alegria. Porém, a verba para tal foi suspensa, ou seja, game over! As obras pararam. Atualmente, a Estação ETE Alegria opera com 15% a 20% de seu potencial, atendendo à, apenas, parte da Zona Norte, Centro e alguns bairros da Zona Sul.
Outro programa de despoluição da Baía de Guanabara, o PSAM (Programa de Saneamento Ambiental dos Municípios do Entorno da Baía de Guanabara), assinado em 2011, também previa a ligação da Maré com a Alegria. A Operação tomou a frente das prioridades da cidade, seguindo o fluxo dos grandes eventos do Rio de Janeiro. Entre as promessas também estava a de despoluição de 80% da Baía – algo que nunca aconteceu.
Até os dias atuais, as estações construídas e reformadas operam no estilo principiante, tratando um volume muito pequeno de esgoto. Tudo isso porque não foram construídos os chamados troncos coletores, uma tubulação que faz parte do sistema de coleta de esgoto e que recebe contribuições de redes coletoras, levando todo o volume para uma estação de tratamento e devolvendo a água tratada. O tronco coletor que levaria todo o esgoto da Maré para a Estação Alegria, assim como o esgoto de Manguinhos, Complexo do Alemão e Bonsucesso, nunca foi construído.
Após uma série de escândalos por irregularidades administrativas, as obras da ETE Alegria acabaram custando quase o triplo do que estava previsto no projeto inicial. O PDBG foi cancelado em 2003 e, em seu lugar, em 2006, entrou o PSAM[em3] , que previa obras de saneamento, redução de emissão de esgoto e limpeza da Baía até 2016. Foi durante o período de vigência do PSAM que o ex-governador do Rio, Sérgio Cabral, assumiu o compromisso da despoluição de 80%. Seu sucessor, Pezão, admitiu, mais tarde, que a meta era “irreal”. Hoje, após a declaração de falência do Rio de Janeiro, o PSAM continua suspenso, sem investimentos e sem continuidade das obras.