Lei federal que exige a permanência de profissionais é pouco aderida pelos municípios
Samara Oliveira
Em março deste ano, uma professora morreu e quatro pessoas ficaram feridas ao serem esfaqueadas por um aluno de 13 anos numa escola em São Paulo. Menos de um mês depois, um ataque a uma creche em Santa Catarina resultou na morte de quatro crianças entre 4 e 10 anos. Ainda no mês de abril, policiais apreenderam uma faca numa escola de Ramos, na Maré, levada por um aluno para se defender, caso acontecesse alguma coisa, segundo relatos. Depois destes episódios, rumores sobre novos ataques espalham pânico e revolta entre responsáveis, alunos e funcionários de escolas por todo o país.
“Se algo acontecer, eu já sei onde me esconder”
O clima de insegurança também atingiu a Escola Municipal Bahia, na Maré, onde uma aluna de 12 anos confessou ter medo de frequentar a escola. A adolescente nos contou que não faltou às aulas desde que começou a se falar sobre o assunto, mas que ela e a mãe oravam diariamente para que nada acontecesse. Movida pelo medo, a estudante começou a observar dentro da escola onde poderia se proteger caso sua segurança estivesse em risco.
Polícia é solução?
Em abril, o Instituto de Estudos Avançados (IdEA) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) lançou a pesquisa Ataques de violência extrema em escolas no Brasil, um levantamento dos casos de atentados contra a vida em escolas nos últimos 20 anos no país, coordenado pela pedagoga e doutora em Educação Telma Vinha e pela mestranda em Educação Cleo Garcia.
As pesquisadoras descobriram que, desde 2002, aconteceram 22 ataques em 23 escolas brasileiras, sendo que nove deles ocorreram em menos de um ano: de julho de 2022 até agora. O estudo ainda está em andamento, mas já se sabe que a maioria dos ataques foi cometida por indivíduos isolados — em apenas três casos houve a participação de duplas. O autor mais jovem tinha 10 anos e o mais velho, já ex-aluno, 25 anos. Em 12 ataques foram usadas armas de fogo; os agressores tinham já armas em seis casos, em quatro, elas foram compradas de terceiros e nos dois ataques restantes as armas usadas não tiveram sua origem identificada.
Com base nesses boatos sobre novos ataques, um debate se instaurou em diferentes esferas, da estatal à das redes sociais. De um lado, houve a defesa pela presença de policiais nas escolas; do outro, a resposta estaria em mais psicólogos e assistentes sociais dentro dos colégios.
Lei não ‘pegou’
No Senado Federal, o presidente do Conselho Federal de Psicologia (CFP), Pedro Paulo Bicalho, chamou a atenção para a necessidade de se fazer cumprir a Lei nº 13.935/19, que tornou obrigatória a presença de profissionais de psicologia e serviço social dentro das unidades públicas de educação. Segundo ele, dos 5.568 municípios brasileiros, apenas 85 adotaram a medida.
“A psicologia brasileira tem um acúmulo histórico nesse campo, com uma legislação já aprovada na área, mas que não vem sendo efetivamente cumprida por estados e municípios. Para que uma política pública seja efetivamente construída, precisamos de custeio que garanta exatamente que uma lei arduamente acompanhada por mais de 20 anos seja implementada. O que nós estamos aqui denunciando é o fato de não estarmos cumprindo a lei, ao não garantir a presença de psicólogos e assistentes sociais na educação básica brasileira”, afirmou Bicalho em seu discurso.
Panorama de profissionais na Maré
Ao ser questionada sobre a presença de psicólogos e assistentes sociais nas escolas municipais do Conjunto de Favelas da Maré, a Prefeitura Municipal do Rio afirmou que todas as unidades escolares, incluindo as da região da Maré, contam com o Programa Interdisciplinar de Apoio às Escolas (Proinape), desenvolvido pelo Núcleo Interdisciplinar de Apoio às Unidades Escolares (NIAP) e que envolve psicólogos, assistentes sociais e professores.
Segundo a nota divulgada, o NIAP é formado por uma equipe composta por professores, assistentes sociais e psicólogos, que atuam nas 11 coordenadorias e têm como objetivo apoiar as ações educacionais para a prevenção de violências.
Sem apoio
Apesar da nota emitida pela Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro afirmar que todas as unidades escolares da Rede Municipal de Educação, incluindo as escolas do Conjunto de Favelas da Maré, contam com o Programa Interdisciplinar de Apoio às Escolas (Proinape), que envolve psicólogos, assistentes sociais e professores, a equipe do Maré de Notícias visitou algumas escolas e constatou que a realidade é um pouco diferente. Fabrício de 8 anos tem Transtorno do Espectro Autista (TEA) e estuda no CIEP Elis Regina. Segundo sua mãe, Claudiana Rodrigues, a escola não tem psicólogos, assistentes sociais , professores de apoio ou mediadores para auxiliar o seu filho durante as aulas.
Esses profissionais também não estão disponíveis para os estudantes das escolas municipais Tenente General Napion, Nova Holanda e Lino Martins da Silva, nem no Espaço de Desenvolvimento Infantil (EDI) Moacyr de Góes. Funcionários das escolas (que preferem não se identificar) afirmaram que a orientação é, caso necessário, encaminhar o aluno para postos de saúde ou hospitais, pois não há atendimento direto nas escolas.
Ana Claudia, que tem dois filhos em unidades municipais da região, confirmou essa informação, acrescentando que, caso a escola perceba a necessidade, os alunos são encaminhados para o Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, na Ilha do Fundão, e entram na fila do Sistema de Regulação (SISREG). Uma funcionária do EDI Moacyr de Góes lamentou a falta de profissionais de apoio: “É uma pena. Tem várias crianças que precisam”.
Sem efeito
“o NIAP não surtiu nenhum efeito, não houve nenhum encontro com os professores, só com a equipe gestora. Foi só um primeiro contato e, aí, não houve mais nada”.
afirma uma ex-funcionária da Escola Municipal Tenente General Napion
Ela aponta que os profissionais também foram muito afetados no pós-pandemia: “Existe um déficit, uma dificuldade enorme de os profissionais envolvidos na educação conseguirem ter uma saúde mental boa. Todos que eu conheço têm relatos de como a saúde está afetada.”
Conforme apurou o Maré de Notícias, não há presença diária de psicólogos e assistentes sociais nas unidades básicas de educação municipal; eles agem de maneira pontual quando acontece algo grave. ONGs do território seriam então chamadas a mediar questões de conflitos nas escolas — justamente atribuições dos profissionais do NIAP.
A Secretaria de Estado da Educação não se saiu melhor quando questionada sobre a presença de psicólogos e assistentes sociais nas unidades de educação sob sua gestão: segundo a pasta, desde 2013, há, “no quadro de servidores concursados, psicólogos e assistentes sociais”. Mas, segundo a secretaria, eles prestam serviços sob demanda, ou seja, não estão diariamente nas unidades.
“Eles prestam orientação e suporte aos gestores e às equipes técnico-pedagógicas em casos de violência, risco social ou de saúde. E, quando necessário, dão atendimentos para a comunidade escolar nos equipamentos públicos de referência”, diz a nota da pasta.
Questão ‘individual‘
A Lei 13.935/19, porém, determina que o trabalho das equipes multiprofissionais não deve se limitar apenas às questões relacionadas à violência. Em seu primeiro artigo, ela estabelece que “as equipes multiprofissionais deverão desenvolver ações para a melhoria da qualidade do processo de ensino-aprendizagem, com a participação da comunidade escolar, atuando na mediação das relações sociais e institucionais”.
Angela Soligo, psicóloga e pesquisadora da Associação de Ensino em Psicologia (Abep), confirma que “a discussão vem com uma conotação de que ‘precisamos cuidar da saúde mental dos agressores’, como se todos eles estivessem dentro da escola, e como se isso fosse simplesmente uma questão individual”. A profissional explica que a medida não prevê trabalho sob demanda, e sim profissionais com cargos efetivos nas redes, atuando em equipe junto às escolas, com atividades planejadas.
“A primeira coisa são as contribuições da psicologia, assim como do serviço social, no contexto educativo. Isso significa contribuir com conhecimentos sobre aprendizagem, desenvolvimento de teorias e estratégias de ensino-aprendizagem, na construção de projetos pedagógicos, de alternativas metodológicas, de estratégias de avaliação. É uma contribuição do ponto de vista pedagógico, com o objetivo de garantir que todas as crianças, adolescentes, jovens e adultos tenham acesso e direito a se apropriar dos conhecimentos veiculados pela escola”, diz ela.
Luiz Gustavo Prado, psicólogo e pesquisador complementa “garantir a atuação de psicólogos capacitados na escola significa contribuir para um ambiente mais inclusivo, afetivo e acolhedor, ou seja, é promover a cidadania e a garantia dos direitos humanos. Apesar da lei 13.935 ter sido aprovada, ainda é preciso engajamento e atuação de Prefeitos e Secretários de Educação para que seja efetivada e colocada em prática”.