Festividade do dia de São Cosme e Damião une religiões, levando tradição de doação de doces às crianças mesmo com cenário de pandemia.
Por Hélio Euclides, em 25/09/2021 às 09h40. Editado por Edu Carvalho
“Porque Cosme é meu amigo e pediu a seu irmão: Damião. Pra reunir a garotada e proteger meu amanhã”, esse é o refrão da música Patota de Cosme, composta por Carlos Senna e interpretada por Zeca Pagodinho. O cantor tem um carinho especial por São Cosme e São Damião, que são tatuados no seu peito. Essa devoção é mostrada todos os anos por diversas pessoas que lotam as igrejas que levam o nome dos irmãos ou na forma da distribuição de doces e brinquedos para as crianças. Na Maré, como em outros pontos da cidade, famílias se unem para seguir a tradição que passa de país para filhos.
A fé em São Cosme e São Damião para seus seguidores é algo especial. Luzia Balbino, católica e ex-moradora da Maré acredita na força dos santos. “Muitos fazem promessas, pois sabem que eles vão ajudar. Eu fiz quando estava grávida de minha filha e sentia muitas dores. Achava que estava doente e era uma época que não tinha ultrassonografia. Com fé deu tudo certo no parto. Já distribuía doces antes dela nascer, mas depois virou uma missão da família”, diz. Ela explica que a questão econômica não ajuda, mas mesmo assim os doces deste ano já estão garantidos. “Muitas vezes a situação financeira não está fácil, mas quando se aproxima a festa aparece o dinheiro dos doces das crianças, como agora”, conta.
Outro ex-morador é Eduardo Lapa, umbandista, que faz questão de distribuir os doces na Maré, o que o faz voltar a infância. “A distribuição de doces vem de família, minha mãe e tias sempre faziam essa tradição no dia 27 de setembro ou 12 de outubro. Mas o dia dos santos eram mais pontual, pois na Rua Capivari, no Morro do Timbau as pessoas já esperavam. Era uma reunião familiar, onde todos se encontravam na casa da minha avó. Era uma farra e muito bom ver o sorrido da criança ao receber doces, bolo e guaraná”, destaca.
Para Lapa é uma celebração de alegria. “Diz a lenda que o espaço onde os santos atendiam tinha muitos doces para tentar amenizar a tenção do ambiente. Hoje os doces também são para lembrar deles. Sinto falta dessa festa em família, hoje distribuo apenas com a esposa, para continuar a tradição de ver as crianças felizes”, enfatiza. O dia dos santos é um momento de muita devoção. “A fé começou a muitos anos atrás. Tive um problema de garganta e minha mãe fez uma promessa. Entrei na igreja todo de azul com uma vela do meu tamanho. Lembro que venho de uma família espírita, com uma fé muito grande nos irmãos, pois eles são capazes de interceder por nós. Faço muitos pedidos e todos são atendidos”, comenta. Ele destaca que a religiosidade é muito intensa. “Na umbanda o sincretismo é forte. A fé cresce como as coisas vão acontecendo, não tem como duvidar”, diz. Ele espera com ansiedade o mês de setembro, por achar ser diferente e um período de muita alegria.
A continuidade da tradição
A fé de uma mãe atravessa a família inteira, com envolvimento de todos, num grande evento. Esse é o Dia de São Cosme e São Damião para Pâmela Carvalho, coordenadora do Eixo Arte, Cultura, Memórias e Identidades, da Redes da Maré e moradora do Parque União.
“É um dia que tiramos para juntar uma questão religiosa com uma cultural. Muitas pessoas fazem promessas e caso tenha conseguido o objetivo alcançado entregam determinada quantidade de doces. Em outros casos, mesmo sem a promessa, sem o recorte religioso, as famílias tentam continuar o hábito.”
Pâmela Carvalho, coordenadora do Eixo Arte, Cultura, Memórias e Identidades, da Redes da Maré
A distribuição de doces é uma coisa incrível, para ela, mas fica triste em perceber que essa é uma ação que vem diminuído ao longo dos anos. “Quando eu era criança tinha que organizar o dia, uma parte na distribuição com a família e na outra era para pegar doces. É um dia das crianças se apropriarem do espaço da rua. É uma movimentação cultural e pedagógica, de fazer a amizade entre as crianças. A distribuição de doces é muito importante. Também nesse contexto onde estamos precisando olhar pelas nossas crianças e pensar como são as infâncias nas favelas e nas periferias”, questiona.
Instituições ajudam na tradição
Esse ano diversas instituições estarão incentivando a distribuição de doces. São coletivos como o Fala Acari, que atuará no seu território, e a Frente Cavalcante que vai distribuir no Morro da Pedreira. São grupos que se engajaram no combate à pandemia nos seus territórios e agora tentam resgatar essa movimentação da distribuição de doces.
Houve distribuição, pela Redes da Maré de doces itinerantes, com mais de 1000 saquinhos na Biblioteca Lima Barreto, na Nova Holanda, na Lona Cultural Municipal Herbert Vianna, na Nova Maré, na Salsa e Merengue e em Marcílio Dias. A inciativa teve apoio das associações de moradores e aconteceu no formato de um cortejo.
A noite, a programação foi para os adultos, para pensar no combate ao racismo religioso e as manifestações de desrespeito em especial às religiões de matrizes africanas e afro brasileiras. Uma live aconteceu no Instagram da Redes da Maré, mediada pela Luma Motta, produtora da Casa Preta da Maré, com os convidados: Dofonitinha Cristina de Iansã, representante do Candomblé, Cosme Felippsen, pastor do Morro da Providência e a Flávia Pinto, dirigente e mãe de santo da Umbanda. “O combate ao racismo religioso é uma questão que tem que passar por todas as religiões. Será uma roda de conversa ecumênica e respeitosa. Independente do credo de cada um, é muito importante a gente prezar pelas nossas manifestações culturais e combate o racismo e a intolerância religiosa”, conclui Pâmela.
Resgatando a história
São Cosme e São Damião eram irmãos, viveram no século III e exerciam a profissão de médicos. Uma característica era não cobrar pelos atendimentos. É famoso o episódio da cura de uma mulher chamada Paládia, que, por gratidão, deu três ovos aos dois irmãos. Porém, por não aceitarem, ela implorou a Damião que aceitasse aquela pequena oferta. Para não ofender a mulher, Damião aceitou os ovos. Este seu gesto provocou a reação de Cosme, que ficou chateado, mas depois fez as pazes com o irmão. Outra qualidade dos dois irmãos era privar pela saúde das crianças. Por não renegarem a fé, foram torturados até serem decapitados.
Na Igreja Católica a festa era comemorada no dia 27 de setembro até o final dos anos 1960. Com a reforma litúrgica, se antecipou, e passou a celebrar no dia 26 de setembro, mas não houve adeptos a mudança, os festejos contiunam acontecendo no dia 27. No Candomblé e na Umbanda são sincretizados como entidades infantis, foram relacionados aos Erês e Ibejis, e são cultuados como protetores das crianças.