Como as relações e necessidade de trabalho na Maré impactam na recomendação de isolamento total na pandemia
Maré de Notícias #113 – junho de 2020
Jéssica Pires
Desde que foi recomendado o distanciamento social, ouve-se a expressão “fica em casa” como forma de diminuir o contágio do novo coronavírus. Ficar em casa é o ideal para tentar desacelerar a contaminação, mas essa condição é possível para todos? Antes de impor esta afirmação, o Maré de Notícias perguntou a moradores e empreendedores da Maré. Em relação à questão do trabalho, a resposta foi unânime: nas favelas, seguir as adaptações indicadas pelas autoridades não é simples. A relação com o trabalho, para os mareenses, lida com uma antiga e conhecida questão da sociedade brasileira: a desigualdade social.
Com a pandemia, diversas foram as mudanças na vida das pessoas, inclusive no trabalho. Algumas medidas provisórias do governo federal estabeleceram a possibilidade do trabalho a distância, o chamado home office; ou ainda a legalidade dos empregadores garantirem a continuidade do vínculo empregatício e do pagamento dos funcionários, mesmo que sem a continuidade dos trabalhos. Mas essa flexibilização não chega para todos.
A pandemia nas favelas, na prática
Na prática, a possibilidade do distanciamento dos postos de trabalho para os trabalhadores formais e também para os informais das favelas não é garantia de tranquilidade. A pandemia, no geral, chegou de maneiras diferentes para moradores de partes também diferentes da cidade. Falta de investimento em saúde pública, condições precárias de diversas categorias profissionais, das habitações e falta de saneamento básico são alguns dos pontos que destacam essa desigualdade.
É importante observar que esta realidade não é uma novidade da pandemia. Em 2015, por exemplo, os brasileiros brancos ganhavam o dobro dos salários de brasileiros pretos e pardos. A taxa de desemprego de pretos e pardos ficou em 14,6%, enquanto entre os brancos o índice é de 9,9%, de acordo com o “Atlas da Violência 2017”, feito pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Também de acordo com o Atlas, a população negra corresponde à maioria (78,9%) dos indivíduos com mais chances de serem vítimas de homicídios. “A pandemia de COVID-19 acirrou as desigualdades sociais e econômicas que se acumulam no Brasil. É só ver que quem mais morre é o pobre e morador de favelas e periferias”, reforça Edson Diniz, diretor da Redes da Maré.
O maior impacto da pandemia do coronavírus nas populações de favelas e periferias também é creditado à “teoria de eugenia”. A eugenia é baseada em teorias cujo objetivo é “melhorar” a raça humana, a fim de melhorar ou empobrecer as qualidades raciais das futuras gerações seja física ou mentalmente. Uma das ações que daria solução à desigualdade social para eugenistas seria controlar da quantidade de pessoas que podem nascer nas famílias de favelas e periferias. Para o diretor da Redes, o que vem acontecendo é uma nova roupagem da teoria, onde existe a “desvalorização da vida dos mais pobres e negros e as favelas como locais à parte.”
SAIBA MAIS:
O termo eugenia foi criado pelo cientista inglês Francis Galton (1822 – 1911), em 1883, e deriva do grego, significando “bom em sua origem ou bem-nascido”. A eugenia defende que raças superiores possam prevalecer de maneira mais adequada ao ambiente. Antes da Primeira Guerra Mundial, a teoria recebia apoio irrestrito de políticos e cientistas e compôs a legislação de 30 estados norte-americanos até metade do século XX. Os questionamentos só ocorreram no fim da Segunda Guerra Mundial, quando os nazistas esterilizaram 140 mil judeus e mataram 6 milhões nos campos de concentração. O Brasil foi o primeiro País da América do Sul a adotar as ideias de eugenia, baseando-se no racismo e na justificativa do fim à imigração, como meio de garantir uma raça superior.
Operações e o coronavírus – o medo visível e invisível
Ainda não há um dado sobre a taxa de isolamento social na Maré, mas se houvesse, certamente seria bem baixo na maioria das favelas do território. Tem sido um desafio conscientizar as pessoas que podem para que fiquem em casa ou que, ao menos, reduzam a circulação nas ruas sem um motivo indispensável.
“Pessoas que moram nas favelas aprendem ou são obrigadas a aprender a sobreviver, conciliando a proteção de sua integridade física com a manutenção econômica de suas famílias”, avalia Levi Germano, morador do Parque União e estudante de Direito. Para ele, a ameaça que é visível e histórica no cotidiano dos moradores de favelas, resultado da política de Segurança Pública adotada nesses territórios, colabora para que as pessoas ignorem ou minimizem os riscos da exposição ou falta de isolamento.
Lidando com o vírus e o trabalho de formas diferentes
Dilamar Batista é moradora da Nova Holanda e trabalha como doméstica há cinco anos. Com o início da pandemia do novo coronavírus, “Dila”, como é conhecida, começou a dormir na casa onde trabalha de duas a três vezes na semana. Para ela, que se mantém isolada quando está em casa, sem contato com ninguém, é um risco para sua família ela ter de circular na cidade, mas continua com o medo de perder a renda.
Já Laudiceia Fernandes, moradora da Nova Holanda, é trabalhadora informal e se viu obrigada a parar totalmente o trabalho pois há pessoas do grupo de risco em sua família, como a mãe hipertensa e com problemas respiratórios e o filho, que também tem problemas respiratórios. “Como as pessoas não estão respeitando as orientações, meu medo é ir trabalhar e trazer o vírus para a minha família”, observou.
Para Cristiane Silva, a crise econômica que a pandemia do coronavírus causou em todo o mundo e também em sua família foi motivo para se reinventar. A moradora do Parque União começou a vender e a fazer entrega dos bolos que já costumava fazer para amigos e família. “Meu esposo está também desempregado e eu fiquei buscando uma solução para ajudar na renda de casa.”
“O trabalho dignifica o homem”
Zoroastro Oliveira é morador do Sem Terra, no Parque União, e trabalha há mais de 15 anos como padeiro, no Complexo do Alemão. Mesmo com o apelo diário das filhas para que ele interrompa as atividades e não vá ao trabalho pelo fato de ser do grupo de risco do coronavírus, por ser idoso e hipertenso, Zoroastro continua saindo da Maré diariamente para o Alemão. As filhas, Jaciara e Janaina acreditam que não seja apenas a necessidade de garantir renda à família que faça com que o padeiro não deixe de ir trabalhar: “Por ele sempre ter trabalho, por acreditar que se ele não for, não vai ter quem faça o trabalho por ele”, comenta Jaciara.
Orientações oficiais
Apesar de Zoroastro contrariar as filhas e seguir trabalhando, padarias são estabelecimentos considerados como serviço essencial, tanto para o governo federal quanto para o estado e o município do Rio. O governo federal atualizou o Decreto publicado no início da pandemia, no último dia 29 de abril, sobre serviços essenciais que podem permanecer em funcionamento. No total, são 57 atividades consideradas essenciais, entre elas, salões de beleza e barbearias, academias de esporte de todas as modalidades e atividades religiosas. O Decreto prevê que o funcionamento das atividades aconteça obedecendo às determinações do Ministério da Saúde, que inclui o uso de máscaras, distanciamento entre as pessoas e disponibilização de álcool em gel, tanto para clientes como para funcionários, apesar de não ser essa a realidade vista aqui na Maré e também em outros pontos da cidade.
A decisão sobre o funcionamento das atividades, porém, fica a critério dos governos estaduais e municipais. O governo do estado do Rio de Janeiro se pronunciou no último dia 12 de maio, dizendo que não vai acatar as diretrizes do governo federal sobre os serviços essenciais e vai manter salões, barbearias e academias fechados. Já o prefeito do Rio, Marcelo Crivella, relativizou os decretos do governo e optou pela reabertura gradual dos serviços, mesmo com o alto número de contaminados.