Apesar de dados do Instituto de Segurança Pública (ISP) apontarem queda nos registros de furto de energia elétrica em 2020 no Rio, a Light divulgou este ano um balanço que destaca recorde de fraudes
Por Tamyres Matos em 03/09/2021 às 07h00.
“Ah, mas favelado não paga conta de luz”. A frase nada incomum esconde uma realidade complexa que envolve os altos preços praticados, a dificuldade de acesso adequado ao serviço nas periferias e os desafios para conseguir pagar a tarifa social no consumo de energia elétrica. Em contraste com os aumentos sucessivos no preço da conta de luz, a agência de dados Fiquem Sabendo divulgou na última segunda-feira (30) que houve queda no número de registros de furto de energia elétrica (os famosos “gatos”) em 2020. Os dados obtidos através da Lei do Acesso à Informação apontam uma queda de 19% (de 828 para 671) nas denúncias em relação ao ano anterior. As informações são do Instituto de Segurança Pública (ISP) do Rio.
No entanto, há mais uma informação importante nesse debate. Em junho deste ano, um balanço da Light divulgado a investidores chamou a atenção para um recorde de “gatos” no primeiro ano da pandemia. Segundo a concessionária, as fraudes representaram, entre abril de 2020 e março de 2021, o desvio de 7.134 gigawatt-hora (GWh). Uma matéria do jornal Extra divulgou a informação, exibindo o seguinte paralelo: essa quantidade de energia seria o suficiente para abastecer todas as casas do estado do Espírito Santo por praticamente três anos.
Eduardo Avila, diretor executivo da RevoluSolar, ONG focada no desenvolvimento sustentável através da energia solar que atua nas favelas Chapéu-Mangueira e Babilônia, na zona sul, argumenta que é preciso um olhar mais cuidadoso para a questão, especialmente no que diz respeito às regiões periféricas. “Fizemos uma pesquisa para ver se essa ideia de que ‘todo mundo tem gato na favela’ correspondia à realidade e vimos que é equivocada. É claro que existem as ligações clandestinas, mas tem uma parcela muito significativa da comunidade que paga conta de luz, apesar do preço geralmente não caber no bolso. E, ainda por cima, essas pessoas recebem um serviço de qualidade muito inferior que nas outras áreas da cidade. Então, há muita revolta e insatisfação com a qualidade e com o preço. Tem gente que precisa escolher entre pagar a luz, comer e comprar um remédio. Essa realidade pode, sim, empurrar muita gente para a clandestinidade.”
O economista acredita que o furto de energia é somente a “ponta do iceberg”. Ainda há muita dificuldade, por exemplo, quando é necessário utilizar benefícios como a tarifa social. Eduardo aponta que somente 11% dos moradores das favelas Chapéu-Mangueira e Babilônia têm acesso ao benefício, quando muitos outros têm condições de renda que se enquadram nas regras para o recebimento do subsídio.
Para Valdinei Medina, de 40 anos, morador do Morro da Babilônia, a quantidade de “gatos” também tem raiz na insatisfação de grande parte da população das periferias do Rio. “A gente da favela que paga a conta mais cara da cidade. Agora se fala muito de crise energética, mas a gente vive isso desde sempre. E sempre com um serviço péssimo. Choveu, falta luz e o reparo muitas vezes nem chega. E ainda temos a situação absurda do pagamento por estimativa. Tem um casal de amigos meus que mora em uma casa sem ar condicionado e paga R$ 500 de luz por mês. Não tem funcionário da Light para fazer medição em cada casa. A própria concessionária, junto com a falta de ações do Estado, leva as pessoas para a ilegalidade”, critica.
Bandeira vermelha até abril de 2022
A Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) anunciou esta semana a criação de uma nova bandeira para a conta de luz: a bandeira de escassez hídrica (hidrelétricas operando com capacidade reduzida devido à falta de chuvas). A taxa tem o valor de R$ 14,20 por 100 kWh e a bandeira ficará em vigor até 30 de abril de 2022. O novo valor representa um aumento de 49,6% (ou R$ 4,71) em relação à atual bandeira vermelha patamar 2 (de R$ 9,49 por 100 kWh), que estava sendo aplicada à conta de luz. Em resumo, o que já estava caro vai ficar ainda mais.
“Esta crise energética estava anunciada há muito tempo. Existe uma suposta celebração por termos no Brasil uma das matrizes energéticas mais renováveis do mundo, mas a gente depende basicamente das hidrelétricas. Isso faz com que fiquemos vulneráveis e dependentes dessa fonte, que também tem impactos socioambientais graves. A escassez dos recursos hídricos é resultado das mudanças climáticas, o que é outro fator que nos torna muito vulneráveis. E a solução apontada pelo governo (federal) é o uso de termelétricas, que são poluentes e agravam as mudanças climáticas, além de serem mais caras”, critica o diretor da ONG.
Segundo a Aneel, desde 2015, as contas de luz passaram a considerar o Sistema de Bandeiras, composto pelas modalidades: verde, amarela e vermelha. Essas cores indicam se haverá ou não valor a ser repassado ao consumidor final em função das condições de geração de eletricidade. “Se temos poucas chuvas e as termelétricas estão acionadas, o custo sobe e adotamos a bandeira amarela ou vermelha. Se os reservatórios estão cheios, não usamos as termelétricas e a bandeira é verde”, explica texto publicado no site da Agência.
Estado de crise e possíveis saídas
Pouca coisa é novidade quando se fala sobre os problemas de abastecimento da energia elétrica. Os cariocas estão acostumados com o termo “apagão”, assim como os brasileiros em geral têm trauma da palavra “racionamento”. Em matéria publicada na edição de dezembro de 2019 da versão impressa do Maré de Notícias, abordamos os prejuízos sofridos por moradores do conjunto de favelas à época, por conta da sobrecarga do sistema elétrico durante o verão. Tudo isso somado aos altos preços oficiais e grupos criminosos que, por vezes, fazem dos “gatos” mais um negócio lucrativo.
A RevoluSolar trabalha com a construção de uma alternativa a esse cenário com a popularização da energia solar fotovoltaica. Ano passado, Eduardo, da ONG RevoluSolar foi um dos finalistas do prêmio Jovens Campeões da Terra, das Nações Unidas (ONU), por conta do trabalho com a organização. Em todas as oportunidades, o carioca reforça o imenso potencial do Rio de Janeiro e do Brasil para protagonizar a energia solar mundial.
“Temos aqui uma disponibilidade de recursos naturais, vento, sol… que poderiam diversificar a matriz energética brasileira fazendo com que ela fosse renovável, limpa e também reduzindo essas vulnerabilidades às questões climáticas. A energia solar é a fonte de energia mais barata da história, segundo a Agência Internacional de Energia. Então falta essa visão para quem conduz a política energética brasileira. O momento atual está pesando e vai pesar ainda mais no bolso dos mais pobres, que pagam tarifas exorbitantes e vivem sob níveis recorde de desemprego. É uma situação bastante complicada que a geração de energia solar pode ajudar a resolver.”
Eduardo, também explica que, no momento em que a energia passa a ser gerada perto de onde é consumida, boa parte do risco de sobrecarga de rede é eliminado. Ele relembra que, recentemente, o Marco Legal da geração distribuída foi aprovado pela Câmara dos Deputados e a discussão está avançando. “Energia solar, infelizmente, ainda é muito mais utilizada pela parcela mais rica da população. Nossa luta constante é por essa popularização, não podemos perder de vista a criação de um incentivo específico para a população de baixa renda quando se discute a geração distribuída de energia.”
Valdinei Medina, que também atua como embaixador da RevoluSolar no Morro da Babilônia, acredita que é possível investir na energia solar para o abastecimento de comunidades inteiras. Para ele, o que falta é a ação direta dos representantes do poder público. “Atualmente, 36 famílias vivem da energia gerada pelo sol aqui na comunidade. Nós mostramos que isso é possível, que existem alternativas. Mas o governo precisa chegar com subsídios, com investimentos”, conclui.