Maria Teresa Cruz
No dia 14 de fevereiro de 2023, pouco depois das 10h, uma comerciante recebeu uma mensagem de um conhecido, informando que o estabelecimento dela havia sido invadido por policiais. Nesta data, a Maré viveu mais um dia de operação com a presença da Polícia Civil e Polícia Militar. A profissional foi até o local e encontrou tudo revirado.
“Vi uma cena de terror! Tudo o que conquistei com muito suor foi destruído. Quebraram a porta, armário, teto de PVC, geladeira, jogaram meus materiais de trabalho na rua. Minhas espreguiçadeiras quebradas, e o estoque de guaraná, coca-cola, entre outras bebidas, tomaram tudo. Levaram o som, a sanduicheira, e alguns produtos de bronzeamento”, relata.
Esse testemunho retrata parte dos dados sobre operações policiais de 2023, disponíveis no 8° Boletim Direito à Segurança Pública e Acesso à Justiça na Maré, lançado no último dia 14 de junho. O documento é feito pelo projeto De olho na Maré, que integra o eixo Direito à Segurança Pública e Acesso à Justiça, da Redes da Maré.
Campeão de denúncias
Foram registradas 211 violações de direitos dos moradores nas 34 operações ocorridas no ano passado. A campeã foi justamente a que ilustra a história, que abre a reportagem: invasão de domicílio.
Dano ao patrimônio, furto de pertences e violência física e psicológica por parte dos agentes do Estado, também foram identificadas no relatório. Os dados anuais mostram que o desrespeito à Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 635, ou ADPF das Favelas, não expressam casos pontuais, mas, sim, uma conduta do Estado.
No ano passado, a polícia descumpriu sistematicamente seis preceitos da ação. Um dos destaques foi a ausência no uso de câmeras corporais pelos agentes da segurança pública, importante dispositivo para combater ilegalidades durante as operações. Em 2023, somente em sete das 34 operações policiais, foi observado o uso de câmera de vídeo nos uniformes dos agentes.
5 perícias em oito anos
A ausência de perícia em situações de morte também chama a atenção e é problemática porque impacta diretamente a investigação: na questão do devido processo legal sobre o fato e uma eventual responsabilização do Estado sobre essa morte. Em nenhuma das oito mortes ocorridas foi realizada a perícia e, em quatro delas, houve indício de execução.
Desde 2016, início do monitoramento que deu origem ao boletim, de 128 mortes, somente 5 casos houve perícia no local. “Apenas através desse procedimento, conseguimos compreender como aconteceu as dinâmicas de mortes em operações como dessa semana. É inadmissível como o ‘não direto’ ao processo investigativo está colocado para os moradores da Maré. Tal fato escancara a desigualdade de como a política de segurança não contempla e não está direcionada para as pessoas que moram na Mare”, analisa Liliane Santos, coordenadora do eixo Direito à Segurança Pública e Acesso à Justiça, da Redes da Maré.
Sem brincar
O levantamento mostra que os estudantes perderam um quarto do semestre letivo de 2023 devido ao fechamento de escolas durante operações. O direito de brincar das crianças também acaba ficando restrito. Um estudo sobre a primeira infância na Maré mostra que, mais de 80% das crianças de 0 a 6 anos, têm a própria casa como principal espaço de lazer.
O sistema de saúde também é impactado a cada operação. No acumulado do ano, a população ficou 26 dias sem atendimento de saúde, por interrupção no serviço. Em muitos casos, apenas a interrupção do atendimento domiciliar é suspensa. Isso afeta diretamente pessoas que sofrem doenças crônicas e têm restrição de mobilidade.
Essas situações podem, em um primeiro momento, não parecerem violações diretas, mas geram impactos que são difíceis de mensurar a curto prazo. Para crianças em idade escolar, por exemplo, o desenvolvimento e aprendizagem pode ser afetado.
Se a educação, saúde e lazer são direitos assegurados pela constituição brasileira para toda população, por que para os moradores de favelas não seria?
“A Redes da Maré tem um papel importantíssimo na articulação de melhorias para qualidade de vida dos moradores da região. Isso inclui pensar a política de segurança pública de forma ampliada e articulada a outras políticas, e não apenas a partir do aparato bélico”, explica Liliane.