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Invasão e conquista: o Brasil não foi descoberto

Sou mulher que ainda chora/ Por tão grande escuridão/ Minha essência está aqui/ Dentro do meu coração/ De um Brasil ensanguentado/ Onde ninguém é culpado/ Mulher da mesma nação! Auritha Tabajara. Foto: Wanderson Padilha/Diário do Nordeste

Como a história contada nas escolas não condiz com a realidade de etnias indígenas brasileiras

Maré de Notícias #123 – abril de 2021

Por Jorge Melo
Jornalista, pesquisador e doutorando em História Política e Bens Culturais pela Fundação Getúlio Vargas (CEPDOC-FGV/RJ)

É impossível pensar sobre “o descobrimento do Brasil” sem lembrar as populações indígenas. A exclusão que atinge milhões de brasileiros também afeta, muitas vezes de forma perversa, os descendentes daqueles que estavam aqui muito antes da chegada dos europeus.

Imagine um paraíso natural, onde as pessoas vivem em harmonia com a natureza, caçando, pescando e produzindo apenas o que precisam, respeitando os ciclos da terra, os peixes, os animais, os rios. Num belo dia, veem surgir do mar grandes embarcações, com visitantes estranhos, brancos, vestidos dos pés à cabeça, com armas que produzem trovões. Trazem também inimigos invisíveis – muitos vírus, bactérias, fungos etc. 

Esqueçam as imagens das aulas de História, que reproduzem a primeira missa no Brasil, a famosa carta de Pero Vaz de Caminha, onde está escrito que “Em se plantando, tudo dá”. Esqueçam também as narrativas que falam da integração harmoniosa entre os donos da terra e os portugueses, nos dias que se seguiram ao 22 de abril de 1500. Essa é a versão dos invasores, dos conquistadores. Para os habitantes da terra, aquele dia iria assinalar o fim de um período de equilíbrio e fartura e o início de um tempo marcado pela dor, violência, morte e pelas tentativas seguidas de destruir suas crenças e culturas. 

Já está provado que o “descobrimento” não foi um acaso. O Brasil era um segredo de Estado. Antes de Cabral, Duarte Pacheco Pereira alcançou águas brasileiras na altura dos atuais estados do Pará e Maranhão, em 1498. Pedro Álvares Cabral, suas 12 caravelas e 1.500 homens fizeram aqui uma escala para tomar posse do território que pertencia a Portugal por força do Tratado de Tordesilhas, assinado em 1494, que dividia a América do Sul entre Portugal e Espanha. Os dois países da Península Ibérica eram os donos dos mares, responsáveis pelas grandes navegações, algo comparado à corrida espacial nos dias de hoje. Não por acaso, todos os nossos vizinhos na América do Sul falam espanhol, com exceção do Suriname, uma ex-colônia holandesa, e da Guiana Francesa.  O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, um carioca de 69 anos, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é um dos mais importantes pesquisadores da cultura e do pensamento dos indígenas brasileiros. É também uma referência no meio acadêmico internacional. Em suas muitas palestras pelo mundo afora, repete sempre uma frase, dita em uma entrevista à Revista Piauí em janeiro de 2014, que nos obriga a pensar: “Eles continuam aí, mas o mundo deles acabou em 1500”. 

Convivência harmoniosa retratada em diversas pinturas passa longe da realidade vivida por indígenas e portugueses – Primeira Missa no Brasil/Victor Meirelles (1861)

Descobrimento X invasão

“O Brasil não foi descoberto, foi invadido”, corrige Auritha Tabajara, lembrando seus ancestrais. Ela tem 40 anos e nasceu em Ipueras, no interior do Ceará. É escritora, poeta, contadora de histórias e a primeira cordelista de origem indígena de que se tem notícia no país. Seu livro Magistério Indígena em Verso e Prosa é leitura obrigatória nas escolas públicas cearenses. Auritha lembra que “aqui já existiam povos de diferentes culturas, que Cabral chamou de ‘índios’ como se fossem todos iguais”. Auritha faz questão de reafirmar que não é índia, é tabajara: “Essa palavra, ‘índio’, foi um apelido dado pelos portugueses, não diz o que nós somos.” 

Segundo o professor da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (USP) Ricardo Alexino Ferreira, que pesquisa narrativas e diversidade, “as invasões europeias nas Américas desde o século XVI foram nefastas. O mais grave foi o extermínio de indígenas, um dos maiores genocídios da humanidade”. Estima-se que em 1500 havia entre cinco e dez milhões de indivíduos, mas esses números não são precisos. Os indígenas não possuíam anticorpos para os vírus que os portugueses, que navegavam pela Europa, África e Ásia, traziam no corpo. O mundo já era globalizado na época. 

Os contatos iniciais no primeiro século de conquista do território, segundo Alexino, custaram mais de um milhão de mortos, seja por doenças ou pelas tentativas de escravizar os nativos, que fugiram para o interior. Segundo o Censo do IBGE de 2010, 817 mil pessoas se autodeclaram indígenas.  

Amoin Aruká teve contato com a covid-19 em janeiro – Foto: Gabriel Uchida/Amazônia Real

Resistência

  Mesmo assim, 521 anos depois do “descobrimento”, resistem mais de 200 povos indígenas, a maioria concentrada na Amazônia – inclusive, alguns grupos isolados e que vivem como viviam seus antepassados quando os portugueses chegaram. É bom lembrar que a Amazônia cobre nove países: Brasil, Venezuela, Bolívia, Equador, Peru, Colômbia, Guiana, Guiana Francesa e Suriname. Cerca de 180 línguas foram preservadas, mas muitas se perderam.

No dia 17 de fevereiro de 2021 morreu Amoin Aruká, cujos membros da família são os últimos da etnia Juma. Por ironia do destino, Aruká sobreviveu a muitos ataques contra seu povo, mas foi vítima da covid-19. Desde os anos 1970, os Juma, que pertenciam à etnia do tronco linguístico Tupi Kagwahiva, foram vítimas de constantes ataques de ruralistas e comerciantes por habitarem uma área muito valorizada na região do Rio Madeira, sul do Amazonas. Mas do que a morte de um homem, são um povo e toda a sua cultura que somem do mapa.

Segundo Alexino, “os indígenas brasileiros são vítimas da chamada História Única. A conquista do Brasil foi contada pelos invasores, que se consideravam os heróis e omitiram que aqui havia sociedades estruturadas.” Essas sociedades que os portugueses consideravam preguiçosas representavam, na realidade, uma forma diferente de viver e entender o mundo. Os nativos não dominavam a escrita, mas valorizavam a comunicação oral como uma arte e, através dela, contavam suas histórias. Não produziam excedentes, a base do sistema capitalista no qual vivemos; não exploravam o trabalho do semelhante, não praticavam o lucro. Sua forma de comércio era o escambo, a troca de produtos.    

Preconceito

Renan Albuquerque é pesquisador e professor do Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e há dez anos trabalha com temas da cultura indígena. Seu interesse começou quando, em 2009, foi dar aulas na unidade da UFAM em Parintins,  cidade na divida com o Pará famosa pelos desfiles de boi-bumbá.

Em Parintins, Albuquerque conviveu com os povos dos territórios Andirá-Marau (habitada pelos Sateré Mawé) e Nhamundá-Mapuera (ocupada pelos Hixkaryana). Segundo o pesquisador, de um modo geral, o brasileiro não vê o indígena como igual, como um cidadão – e, por isso, a sociedade precisa se informar sobre seus antepassados e seus descendentes, sobre a história dos povos tradicionais, para superar esses preconceitos. “Infelizmente, vivemos um momento em que os indígenas estão completamente desprotegidos, em todos os sentidos; na saúde, na preservação de seus direitos e de suas terras, que são garantidas por lei.”

Auritha afirma que esse preconceito tem uma razão de ser. Durante muito tempo, não se valorizou a história desses povos, que deveria ser contada pelos próprios indígenas. Isso só aconteceu a partir de 2008, com a Lei nº 11.645, que determina o ensino da cultura indígena nas escolas. “A história do Brasil antes de 2008 era contada somente pelo olhar dos historiadores não indígenas. Então, a nossa cultura não tinha crédito na escola. Ainda falta muito para que as culturas e tradições indígenas sejam realmente respeitadas como devem ser”, conclui a cordelista.

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