Sem os incentivos do Estado, Maré conta com iniciativas independentes para garantir o acesso de crianças aos livros
Maré de Notícias #99
Por: Jéssica Pires
O Conjunto de Comunidades da Maré têm 16 favelas e 140 mil habitantes. É o 9º bairro mais populoso, e o maior conjunto de favelas da cidade do Rio de Janeiro, de acordo com o Censo Maré, pesquisa e publicação da Redes da Maré e Observatório de Favelas. Atualmente, para o atendimento a toda essa população existe apenas uma biblioteca municipal: o Espaço de leitura Jorge Amado, que fica na Rua Ivanildo Alves, s/nº, Complexo da Maré (dentro da Lona Cultural Municipal Herbert Vianna). As três outras bibliotecas da Maré são iniciativas locais. A Biblioteca Nélida Piñon é iniciativa de um morador da favela Marcílio Dias; o Instituto Vida Real também abre às portas ao público como um espaço para leitura, e a Biblioteca Popular Escritor Lima Barreto, iniciativa da Redes da Maré. A Biblioteca Lima Barreto atende também o público infantil com a Sala de Leitura Maria Clara Machado.
“Na Maré eu só conheço duas bibliotecas. Eu acho pouco, tinha que ter muito mais para todas as crianças poderem aproveitar essa parte da leitura, uma em cada comunidade. E que a gente pudesse trocar conhecimento também. Eu acho injustiça que nem todas as crianças possam ter acesso”, lamenta Ketellem Cristina, estudante frequentadora da Biblioteca Lima Barreto. Para Luciene Vieira, coordenadora da biblioteca, a escassez nos espaços de leitura e bibliotecas na Maré é apenas reflexo da negação de direitos básicos na Maré. “O primeiro contato com os livros com certeza tem influência na vida de um possível leitor ativo. É muito simbólico termos jovens como a Ketellem que mesmo com a disputa da era da tecnologia e das redes sociais com o livro, optam por estar em um ambiente como esse, uma biblioteca comunitária. E ainda reconhecer esse espaço como potência, como uma ferramenta importante. A biblioteca também configura-se como espaço de encontro.”
Desde os doze anos, Ketellem frequenta a Sala de Leitura Maria Clara Machado. A busca por um espaço de leitura foi espontânea pela jovem que acabou de completar 15 anos. Ketellem estuda no Colégio Estadual Cesar Perneta, no Parque União, e a escola não tem biblioteca, como é comum nas escolas na Maré. Além de frequentar a biblioteca, ela também é multiplicadora da importância da atitude: traz suas irmãs mais novas para a biblioteca e sempre que pode pega livros para os pais lerem em casa.
Além de frequentar diariamente a biblioteca, a jovem faz cursos no Instituto Vida Real e diz que pretende mudar de escola para garantir um acesso melhor a educação. Ketellem tem sonhos grandes. “Eu gosto de ler livros infantis, romances e aventura. A Procura do Par Perfeito é o meu atual livro favorito. Ler aumenta meu conhecimento, minha inteligência, é tipo um exercício mental. Se você está bem, você lê; se você não está bem, você não lê”. A leitura ativa, e o convívio na biblioteca já fazem parte da rotina da jovem.
A importância do incentivo à leitura infanto-juvenil
O Ministério da Educação divulgou pesquisas científicas realizadas nos Estados Unidos (na Universidade de Stanford) e na França (na Unidade de Neuroimagiologia Cognitiva do Instituto Nacional Francês de Saúde e Pesquisa Médica, Inserm/Comissão de Energia Atômica e de Energias) que comprovam que a leitura faz bem ao cérebro. “Eu vejo muita diferença na minha leitura, na forma com que eu falo com as pessoas e me expresso. Descubro sempre novas palavras, e descobrindo as palavras vou buscando o significado delas, isso é muito bom. Acabo aprendendo mais com os livros do que na escola. Porque quando você gosta de ler, você quer saber mais e mais. Tenho vontade de ser arquiteta, designer, engenheira e estilista. Sei que vai ser possível isso tudo, porque acredito que um livro pode mudar a vida de uma pessoa”, conta Ketellem.
Para Daniela Name, curadora, crítica de arte e assessora de cultura da Redes da Maré, estamos vivendo tempos sombrios, nos quais a educação está visivelmente ameaçada. Segundo ela, é fundamental termos a literatura presente na escola e livros acessíveis para quem não pode comprar – daí a importância das bibliotecas públicas. “Um livro pode realmente abrir novos mundos. Não apenas no que diz respeito a conhecimento objetivo do mundo, sobretudo pelo que nos oferece de ficção e fantasia. É com a literatura, uma modalidade da arte, que percebemos que podemos imaginar outros mundos, outras formas de viver o espaço, o tempo, nossas relações afetivas. Um livro faz com que você crie afinidade até mesmo com coisas e pessoas que não existem. Isso é revolucionário, pois apresenta novas opções para a vida”, complementa.
Em busca de melhorias concretas para a educação na Maré
A Biblioteca Lima Barreto e a Redes da Maré desenvolvem o projeto “Maré de Ler”, que tem como objetivo fortalecer e ampliar as ações desenvolvidas na biblioteca, garantindo uma programação diferenciada e contínua. Sensibilizar as crianças e familiares para a cultura do livro também é um objetivo do projeto. “A Ketellem é uma adolescente que se enquadra como resultado desse processo. Além de ela fazer a leitura na biblioteca, ela leva os livros pra casa, ou seja, contribuímos para a formação de novos leitores, sejam adultos, famílias ou crianças”, fala Luciene.
Em 2005, a Biblioteca Popular Escritor Lima Barreto foi criada para atender à demanda de jovens e adultos da Maré garantindo um espaço onde pudessem ler e estudar. Em 2011, foi aberta Sala de Leitura Maria Clara Machado, para o público infantil. Os números comprovam o sucesso da biblioteca que é referência na região: tem uma média anual de doze mil atendimentos a crianças e adultos, entre empréstimos e consultas de um acervo de quatorze mil livros, CDs, DVDs e participação em atividades. A sala dos adultos é ponto de encontro de pessoas se preparando para provas do Ensino Médio e do vestibular. Uma turma concentrada que costuma trocar experiências e ensinamentos. Na sala de leitura infantil as atividades são direcionadas a contação de história, oficinas, material para desenho, pintura, brincadeiras e jogos.