Depois de períodos de violência doméstica, mulheres buscam apoio em espaços de acolhimento
Maré de Notícias #124 – maio de 2021
Kelly San
Cria da Maré, mestranda no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais (PPGAV- UFRJ)
No Brasil, 1,3 milhão de mulheres são vítimas de violência doméstica por ano, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estática (IBGE); em média, cinco mulheres são vítimas de feminicídio por dia, de acordo com dados da Rede de Observatório da Segurança. Os números podem ser ainda maiores do que os notificados, já que muitos casos não chegam ao conhecimento das autoridades de segurança pública. Algumas das vítimas conseguem romper o ciclo da violência, mas qual o próximo passo a ser dado? Alguns espaços na Maré oferecem suporte, permitindo que elas possam recomeçar a vida com autonomia e com apoio psicológico e jurídico.
Muitas mulheres que são mães não denunciam por medo de que isso prejudique seus filhos, seja de forma psicológica ou financeira, como aponta o artigo Violência doméstica: sinônimo de mulheres/mães culpadas?, da doutora em sociologia Rosana Morgado. A autora explica que a decisão das mulheres – tanto se permanecem ou se saem da relação – está relacionada, também, a ter suporte da família e acesso a profissionais que possam entender as suas demandas, assim como lidar com a pressão social.
Val (nome fictício), moradora da favela Rubens Vaz, Maré, e mãe de três filhos, conta que começou a namorar e tudo aconteceu de forma muito rápida. Ao engravidar, decidiu morar com o pai das crianças; com o nascimento do primeiro filho, ela precisou parar de trabalhar para se dedicar aos cuidados do bebê. E nessa convivência começou a rotina de insultos, chantagens, constrangimentos, manipulação e injúrias contra ela: “Eu sinto a minha perna doer até hoje por conta de um chute que ele me deu. As crianças estavam por perto, peguei o mais novo e pedi ao mais velho para ligar para a avó me socorrer”. O medo de ficar sozinha para cuidar das crianças a fazia tolerar as violências. “De vez em quando ele trabalhava à noite e chegava em casa com cheiro de bebida. Descobri que essas saídas noturnas eram para encontrar outras mulheres; quando cobrei isso dele, as agressões se intensificaram”, lembra.
Assim como Val, Michele Cristina (37) é nascida na favela Rubens Vaz, Maré, e viveu uma situação de violência parecida. Mãe de três filhos, ela é uma mulher preta que engravidou aos 14 anos e saiu de casa para morar com o seu companheiro em Minas Gerais, porém, ela já sofria violência doméstica aqui no Rio. “Eu tentava reagir às agressões, mas naquela época não tinha muito que fazer. Já pelo fim da relação, as agressões ficaram ainda mais difíceis de evitar, pois ele me via na rua e já queria me bater”, conta.
Depois de um tempo juntos, já com o segundo filho do casal, ela decidiu voltar para o Rio, rompendo, assim, o ciclo da violência. Hoje ela fala com orgulho dos três filhos que criou sozinha após o falecimento do seu companheiro: Rayanne Soares (24) cursou Gestão Pública na Universidade Federal do Rio de Janeiro, trabalha como assessora parlamentar e é mãe do Miguel (5); Michel Soares (22) já viajou o país atrás do sonho de ser pugilista; e Raynner Soares (20) tem seu próprio negócio, um lava-jato que funciona na quadra da favela Rubens Vaz.
Onde buscar ajuda na Maré?
Muitas mulheres se articulam em uma rede de apoio a fim de romper esses ciclos que violam os direitos das mulheres. Priscilla Monteiro é psicóloga e moradora do Morro do Timbau. Junto com outras moradoras da Maré, fundou o Espaço Casulo, local de acolhimento que incentiva práticas de autonomia de mulheres, prioritariamente pretas. “O nosso objetivo está na conscientização e no estímulo do autoconhecimento, desenvolvimento, reencontro e a afirmação dessa nova mulher”, explica a psicóloga. O projeto funciona no Morro do Timbau e oferece atendimento psicológico, dança pélvica, roda de gestantes, roda de ervaria e fitoterapia, entre outras atividades.
A Casa das Mulheres funciona desde 2016 na favela do Parque União. É um espaço concebido pela Associação Redes da Maré a fim de fortalecer o protagonismo de mulheres mareenses. Antes de ser decretada a pandemia, foram 150 mulheres alfabetizadas; 86, formadas em gastronomia básica e avançada; 84 tornaram-se assistentes de cabeleireiro e 58 passaram a atender em casa ou trabalhar para alguma empresa de beleza. No enfrentamento à violência contra a mulher através do atendimento sociojurídico e psicológico, foram realizados 337 acolhimentos pelo Maré de Direitos.
A Rede de Apoio às Mulheres da Maré (RAMM) surgiu a partir de iniciativa da ONG Luta Pela Paz e é voltada para a formação de pessoas que farão atendimento a essas mulheres que sofrem algum tipo de violência. “A ideia da RAMM é instrumentalizar profissionais da Maré que recebem essas mulheres, com informações sobre organizações que podem apoiar e acolher as vítimas”, explica Lola Werneck, coordenadora de articulação da ONG Luta Pela Paz e representante da Luta pela Paz na RAMM.
Com o aumento do número de casos de violência doméstica no início da pandemia e as instituições fechadas, algumas articuladoras de instituições da Maré foram convocadas pela RAMM para receberem um curso de capacitação para atender mulheres vítimas de violência doméstica neste momento. “Todo mundo sabe que a Maré é um território protagonizado por mulheres. Só estamos dando continuidade a essa história”, explica Lola. Fazem parte da rede a ONG Luta pela Paz, o Centro de Referência de Mulheres da Maré (CRMM), o Centro de Referência para Mulheres Suely Souza de Almeida (CRM), a Casa das Mulheres (Redes da Maré), o Observatório de Favelas, Caps II – Carlos Augusto da Silva (Magal) e a Coordenadoria de Atendimento Primário CAP 3.1.
Não se cale! Busque apoio.
Casa das Mulheres
Rua da Paz, 42. Parque União.
Centro de Referência de Mulheres da Maré Carminha Rosa (CRMM)
Rua 17, Vila do João – Maré (anexo ao Posto de Saúde) Tel/ Fax: (21) 3104-9896
Centro de Referência para Mulheres Suely Souza de Almeida – CRM-SSA/UFRJ
(21) 3938-0623
Centro Especializado de Atendimento à Mulher Chiquinha Gonzaga
R. Benedito Hipólito, 125 – Praça Onze – Centro T: 2517-2726
Espaço Casulo
www.instagram.com/espacocasulomare
A lei na teoria e na prática
Em 7 de agosto de 2006, foi sancionada a Lei nº 11.340, que criminaliza a violência doméstica e familiar. Ela é popularmente conhecida por Lei Maria da Penha em homenagem à mulher cujo marido tentou matá-la duas vezes e que, desde então, se dedica ao combate da violência contra as mulheres. Sendo uma política pública de enfrentamento a casos de violência doméstica, a lei trouxe avanços à luta da violência contra mulher, como, por exemplo, a criação de outras leis, como a de número 13.104/2015, que determina ser o feminicídio um qualificador que transforma o homicídio de mulheres em um crime hediondo.
Ainda que a lei Maria da Penha seja considerada pela Organização das Nações Unidas (ONU) como uma das três melhores legislações para o enfrentamento da violência contra as mulheres, nem toda vítima, considerando classe, raça, etnia e orientação sexual, usufrui dos mesmos direitos da proteção garantida por ela. No caso das favelas, a violência doméstica e de gênero muitas vezes pode ser silenciada devido à existência de um poder paralelo, seja o tráfico ou a milícia, que acaba fazendo com que as mulheres acreditem mais na eficiência dessa instância do que a das autoridades oficiais de segurança.
Além disso, muitas das vítimas desconfiam dos agentes de segurança pública como uma alternativa de proteção, já que muitas delas já assistiram a policiais agredindo seus filhos, irmãos e sobrinhos. Jô (nome fictício), moradora da Nova Holanda, foi vítima de violência doméstica e conta que, ao procurar a Delegacia de Atendimento à Mulher (DEAM), se sentiu violentada novamente; ela não conseguiu fazer o registro da ocorrência. “Chegando na DEAM, o inspetor disse que não ia adiantar o registro porque ele não teria como mandar uma viatura na favela para fazer cumprir a medida protetiva”, conta.
“Essa ação descrita é ilegal e, em casos como esse, eu sempre digo à mulher para reduzir os danos procurando outra delegacia, pois o mais importante é garantir o bem-estar e a segurança dela” explica a advogada Camila Claro. Dessa forma, Camila incentiva as vítimas a não desistirem de denunciar as agressões nas delegacias e também a procurar outras formas de ajuda, como os espaços de apoio.
Espaços de denúncia:
DEAM Centro
Av. Visconde do Rio Branco, 12 – Centro T: 2334-9859 / 3657-4323
DEAM Jacarepaguá
Rua Henriqueta, 197 – Tanque T: 2332-2578/ 2332- 2574
DEAM Oeste
Rua Cesário de Melo, 4138 – Campo Grande T: 2333-6941 / 2333-6944
Defensoria Pública
Av. Marechal Câmara, 314 Ouvidoria: 0800 282 2279
Núcleo de Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública (NUDEM)
Rua do Ouvidor, 90, 4º andar – Centro T: 129 ou 2332-6371