Essa é a busca por um jornalismo comunitário ético, mobilizador e que ajuda a gerar mudanças para o território.
Por Jéssica Pires e Lucas Feitoza
Quando o jornal comunitário Maré de Notícias foi imaginado, havia um objetivo principal e inegociável: disputar com os veículos da chamada grande mídia a narrativa que produzia pautas baseadas em estigmas, racismo, marginalização dos moradores e na representação dos territórios apenas com o olhar da ausência e do negativo. Esse olhar não contribui para a resolução dos desafios presentes nesses espaços e, desde então, são 150 edições lutando para mostrar o outro lado dessas histórias.
O Maré de Notícias entende o jornalismo comunitário como um instrumento fundamental de visibilização e fortalecimento de memórias e identidades. Também temos um papel importante apresentando denúncias e serviços à população. Além da ética jornalística, acreditamos na importância de um olhar “de dentro” para construir essas narrativas, ações que apenas um jornalista comunitário conseguem fazer.
A equipe de jornalistas e comunicadores, formada em sua maioria por moradores da Maré, desde 2009 tem produzido essas páginas, e está sempre atenta a como a Maré pode e deve ser representada.
Dois elementos fundamentais na produção do jornalismo comunitário do Maré de Notícias são: a mobilização e a incidência. A mobilização nos guia a pensar como envolver os moradores e parceiros territoriais na produção e distribuição das notícias. A incidência, em como a partir das reportagens produzidas é possível buscar soluções e pressionar para que elas surjam.
Nessas 150 edições, muitas histórias foram contadas e transformações foram percebidas no território. Nesta matéria, contaremos algumas delas.
Segurança pública
As primeiras edições do Maré de Notícias evidenciavam o interesse das pessoas pela pauta, com base em pesquisa realizada entre os moradores. Na edição 6, o texto “Segurança pública deve garantir a vida” abordava o direito à vida a partir da notícia sobre um confronto que deixou seis mortos. A reportagem falava especialmente sobre a truculência da operação policial e relembrava outros casos com vítimas fatais — a maioria, crianças.
Diferentemente da grande mídia, o Maré de Notícias enquanto jornal comunitário evidencia o impacto da segurança pública em geral e das operações policiais na vida dos moradores, assim como maneiras seguras de fazer denúncias e assegurar direitos.
Momentos muito simbólicos foram a Marcha Contra a Violência na Maré e a mobilização para a redação de cartas pelos moradores, posteriormente encaminhadas ao Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ).
Saúde
O direito ao saneamento básico sempre foi uma luta constante na Maré, desde os primeiros moradores. Garantir a saúde das pessoas começa por uma rede de saneamento eficiente e com o simples acesso à água potável. E este e outros temas têm sido temas recorrentes no jornal. Uma ferramenta importante para essa luta, a ACP do Saneamento Básico, foi pauta da edição 147 com a reportagem O preço do saneamento básico.
O Maré de Notícias foi uma ferramenta importante durante a pandemia do coronavírus para que os moradores, sobretudo aqueles que ainda têm dificuldades de acesso à internet, pudessem ter informações sobre formas de prevenção, auxílio emergencial, campanhas para amenizar a insegurança alimentar e a campanha de vacinação.
Muitas informações da campanha Maré Diz NÃO ao coronavírus e do Vacina Maré foram veiculadas no Maré de Notícias. A edição 127, que exibiu a manchete Maré vacinada, é um marco desse período.
Em 2022, publicamos a série de reportagens Raio- X da Saúde na Maré, que investigou o acesso dos moradores aos equipamentos no território, além de matérias tratando de temas como saúde mental e racismo no atendimento médico e violência obstétrica.
Potência do território
Desde a primeira edição, contamos com uma importante rede parceira: as associações de moradores das 16 favelas. Elas já foram nosso principal ponto de distribuição, e atualmente apoiam nossos distribuidores para que os exemplares cheguem aos moradores. Essa relação é uma das heranças da metodologia de trabalho da Redes da Maré, que reconhece a importância da ação das associações no território.
Nestas 150 edições, aconteceram muitas mudanças no território, algumas chamam atenção para outros elementos que compõem a nossa região.
Uma delas é a transformação da Rua Ivanildo Alves. Conhecida como “divisa”, na Baixa do Sapateiro, esse território marcado pela memória da violência hoje é uma área de lazer e brincadeiras, graças à criação da Praça da Paz.
A construção do Memorial de Vítimas da Violência foi outro marco pautado pelo Maré de Notícias.
A edição 130 trouxe a matéria Eu amo a minha rua, em que destacamos como o reconhecimento do nome das ruas pelo poder público pode aumentar a autoestima dos moradores.
As passarelas e as travessias inseguras na Avenida Brasil vêm sendo uma cobrança nas páginas deste jornal há mais de dez anos. As edições 16 e 27 destacaram a precariedade das passarelas da Fiocruz e do Piscinão de Ramos. Na edição 28, trouxemos a matéria Travessia por um fio, problema que ocupou novamente as páginas da edição 140, no texto Insegurança constante.
Só em abril de 2023 as duas passarelas foram finalmente reformadas.
Educação de qualidade
A Redes da Maré nasceu da demanda por educação no território; por isso, o tema faz parte da gênese do Maré de Notícias, sendo constantemente alimentado por pautas pela ampliação da escolarização. Importantes conquistas foram destaque, como o aumento do Campus Maré e a chegada de novas unidades escolares ao território.
Todos os anos, o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) é tema de extensas pautas; entre as matérias da edição 115, destaque para Sem condição não tem graduação, que tratava da dificuldade de os alunos estudarem para o exame nacional durante a pandemia.
Ações das próprias escolas, que mobilizam pais e alunos para garantir a melhoria do espaço físico das escolas, sempre são pautadas. O Maré de Notícias também foi um canal importante para fortalecimento das campanhas de apoio à matrícula escolar e à mobilização para a construção de um Fórum Educacional na Maré.
Cultura e favela
O Maré de Notícias está sempre atento às produções, aos novos artistas e às expressões culturais das 16 favelas. Divulgamos e promovemos a agenda cultural do território e de seus principais grupos, como a Cia Marginal, Cia Cria do Beco, a Cia de Dança Lia Rodrigues e o grupo Mulheres ao Vento, entre outros.
A agenda dos espaços culturais, como a Lona Cultural Municipal Herbert Vianna, o Centro de Artes da Maré, o Galpão Bela Maré, o Pontilhão e o Museu da Maré, sempre marcou presença entre as pautas do jornal.
Divulgar a programação do cenário artístico mareense nos ajudou a também falar de temas como acessibilidade, racismo, machismo e outros tipos de opressão também presentes na cultura. É o caso da edição especial 71, de novembro de 2016, inteiramente dedicada à cultura afro-brasileira.
Funk: O som da favela foi uma das matérias da primeira edição desse jornal e, ao longo do tempo, o ritmo esteve presente em diversos números do Maré de Notícias: Funk: Som de preto, de favelado e criminalizado, na edição 115; Funk conquista o mundo, mas ainda quer mais, na edição 131; e A importância do funk na cultura e economia periférica, na edição 148.
Ainda há um longo caminho a percorrer, cheio de desafios a enfrentar, mas é notório o maior conhecimento que os moradores da Maré têm sobre seus direitos, construído através das narrativas contadas por eles. Como nestes anos de trabalho, continuaremos a falar mais alto para fortalecer, através das páginas do Maré de Notícias e com apoio de todo comunicador comunitário, ainda mais a nossa comunidade.