Nesta semana, o território completa 27 anos como bairro, mas ainda lhe faltam direitos
Por Thaís Cavalcante em 20/01/2021 às 15h
Editado por Edu Carvalho
Minha terra não era terra. Era água, mangue. Foi ocupada de uma forma tão urgente que não há nada que possa significar mais que isso e afirmar que somos donos desse lugar. A casa de madeira, fincada sobre a água – palafita – foi a primeira solução encontrada pela população mareense para a falta de moradia, ainda nos anos 40. Enfrentando a maré baixa ou a maré alta, a luta por direitos estava só começando. Quando nasci, em 1994, já existia a reforma e toda a estrutura improvisada que fez toda a Maré ser aterrada e formada a partir do poder e da articulação do próprio povo.
Um marco aconteceu em janeiro do mesmo ano: a Maré foi reconhecida como bairro a partir de um decreto municipal, sendo um espaço urbano e desenvolvido. Hoje é o nono mais populoso da cidade do Rio de Janeiro, com cerca de 140 mil moradores. Ainda que pertencer a um lugar não tenha a ver só com o vínculo de nascimento ou de criação, muitos já negaram sua origem até realmente entenderem o valor histórico, de luta e resistência do seu espaço. Até perceber o poder que tem, primeiro, é preciso a própria valorização e entender como isso pode transformar também o olhar do outro.
Saber a data de formação de cada favela fala muito sobre as necessidades dos territórios. Primeiro, veio o Morro do Timbau em 1940 e sua colônia de pescadores, depois a Baixa do Sapateiro em 1947, Conjunto Marcílio Dias em 1948, Parque Maré em 1953, Parque Rubens Vaz em 1954, Parque Roquete Pinto em 1955, Parque União em 1961, Praia de Ramos e Nova Holanda em 1962, Conjunto Esperança e Vila do João em 1982, Vila do Pinheiro em 1983, Conjunto Pinheiro e Conjunto Bento Ribeiro Dantas em 1989, Nova Maré em 1996 e Salsa e Merengue nos anos 2000.
Olhando o passado para construir o futuro
A história começa de dentro para fora e com forte intenção. Uma população tão grande é representada pelos presidentes das associações de moradores das 16 favelas que compõem a Maré. Para discutir e entender os desafios de 2021, os presidentes se reuniram com Diego Vaz, subprefeito da Zona Norte do Rio de Janeiro no dia em que o território completou seus 27 anos como bairro. O primeiro encontro de lideranças levantou questionamentos sobre quais são as principais dificuldades de cada favela, como a falta de investimento na saúde, coleta de lixo e educação. Também sobre problemas mais estruturais e como o desenvolvimento local pode trazer um futuro melhor para a população mareense. Principalmente, que isso possa ser realizado independente de gestão municipal ou estadual.
Após ouvir as necessidades, o subprefeito fez promessas: “A nossa prioridade agora é para ter vacinas nas clínicas da família. Quando acabar esse primeiro momento, teremos as escolas como prioridade. Tudo o que vocês precisarem no que diz respeito a serviços básicos, eu vou articular diretamente. A gente passa por momentos de dificuldade e falta de recursos, mas o que eu puder eu vou fazer. Podem me cobrar”.
Um dos presentes no encontro foi Pedro Francisco, cria da Vila do João e presidente da Associação de Amigos do Conjunto Esperança, há 9 anos. Ele conta que sua motivação para atuar como uma liderança local vem do apoio que oferece às pessoas. “Gosto de estar no dia a dia, ser um conciliador, aquele que escuta a necessidade de cada um e tenta encurtar a distância entre o território e o poder público”. Durante sua vida na comunidade, ele percebeu que depois que a favela virou bairro, o acontecimento mais marcante foi a construção de novas escolas, colégios e creches no território. Por outro lado, afirma que os funcionários da educação não foram valorizados. Postos de saúde e Clínicas da Família em seus primeiros anos de funcionamento também foram fundamentais no desenvolvimento do local.
Para que seja feito um verdadeiro reconhecimento do lugar, Pedro garante que a população precisa saber o que um bairro tem direito, quem deve ser cobrado e quem os representa. Como uma voz dos moradores, ele viveu os anos 80 e 90 na comunidade percebendo que ela cresceu e se desenvolveu muito, mesmo com a ausência governamental. Para ele, há muita reivindicação, mas também muito cuidado. “A Maré é a minha casa, tenho muito amor por isso. O trabalho é cansativo, mas enquanto eu tiver de pé eu vou lutar por dias melhores”. O trabalho em comunidade continua forte ainda hoje também para Isaque Nunes, presidente da associação de moradores do Morro do Timbau. Relacionado ao trabalho que faz, ele conta que não trabalha sem parcerias. “Sozinho não tem como, eu tenho apoio de muitos voluntários da comunidade e de amigos”.
Em busca de reconhecimento e igualdade
Edson Diniz, diretor da Redes da Maré, admite que o título de bairro no território é mais formalidade do que prática. “Em relação à infraestrutura de bairro, com linhas de ônibus, saneamento básico, políticas públicas de proteção às crianças etc, a gente vê que a Maré ainda não tem isso. O Estado não garante esses direitos mais básicos à população. O que ela conseguiu de melhorias vem muito como fruto da luta dos próprios moradores e de suas instituições locais, como a Redes da Maré, somando forças para pressionar os estados e os governos”, diz.
Assim como o primeiro direito básico a ser conquistado foi a moradia, outro muito importante é a visibilidade desse espaço. Colocá-lo no mapa para que a favela faça parte da cidade como ela sempre fez, mas sem muita valorização. Edson relembra a mobilização feita para diversas ruas ganharem nomes a partir da colocação de placas e da inclusão de CEP’s, como ação fundamental de resgate da memória local. Todas as ruas e seus nomes contam histórias e no projeto Maré de Ruas e Histórias incentivou esse fortalecimento local e de um projeto urbano da cidade, reconhecido anos depois.
Quem também construiu laços e vivência na Maré foi Hélio Euclides, jornalista e cria da Vila do Pinheiro. Ele acredita que a XXX Região Administrativa da Maré (RA), Detran, Fundação Leão XIII e a presença de outros serviços tiveram influência do decreto assinado pelo então prefeito César Maia. Uma consequência que não fez os moradores deixarem de enxergar a Maré como um conjunto de favelas. “O decreto veio de cima para baixo, sem uma grande participação dos moradores. Se já foi feito, também não vale voltar atrás. Somos um bairro com características de favela, porque ainda faltam muitas políticas públicas aqui. Mas é um reconhecimento brilhante que precisa de muita luta ainda. Espero que a gente ainda possa viver esse bairro Maré”.
Faça um passeio de barco pelas favelas da Maré nos anos 80:
Continue relembrando essa história de luta:
Conheça mais da Maré nos links abaixo:
Censo da Maré
Guia de Ruas da Maré
Memórias de Moradores do Morro de Timbau
Memórias de Moradores da Nova Holanda
Livro “Testemunhos da Maré”, de Eliana Sousa Silva