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Migrantes africanos preservam a origem e criam novas expressões culturais na Maré

Segundo o Censo Maré, o número pode ser ainda maior e, dos africanos, ainda se destacam no território, pessoas oriundas de países como Moçambique, Quênia, Congo, Cabo Verde e Gana.Foto: Gabi Lino/ Maré de Notícias

Dentro do bairro Maré, existe um outro bairro: o Bairro dos Angolanos. O local abriga a comunidade migrante no território que, de acordo com o Censo Maré (2019), conta com 278 moradores estrangeiros. A maioria absoluta desses migrantes são angolanos: 195 pessoas.

Segundo o Censo Maré, o número pode ser ainda maior e, dos africanos, ainda se destacam no território, pessoas oriundas de países como Moçambique, Quênia, Congo, Cabo Verde e Gana. Esses moradores são responsáveis por preservar a cultura do continente berço do mundo e por criar novas conexões inspiradas no encontro entre África e Maré.

A Organização das Nações Unidas (ONU) e a Organização Internacional para Migrações (OIM), define hoje o migrante como qualquer pessoa que se mude ou se desloque através de uma fronteira nacional ou internacional, independentemente do estatuto legal da pessoa, do movimento ser voluntário ou involuntário, das causas do movimento ou da duração da estadia. Em 2017, o número de migrantes alcançou os 258 milhões no mundo.

Porta do Brasil

Mario Alexandre, de 42 anos, é presidente do núcleo Maré da União de Angolanos no Rio de Janeiro (Unaerj), e vive no território há 28 anos. “Viemos a busca de um sonho, de uma vida melhor, de estudos, e hoje já tem angolanos aqui que são avós. Eu criei minha família aqui”, conta. 

Mario é turismólogo e, embora tenha visitado outros pontos do Brasil, o local para ele é especial. “A Maré abriu as portas pra gente conhecer a sociedade brasileira. Dizem que a Maré só tem violência, mas não é isso. Fomos recebidos de braços abertos. É um povo hospitaleiro que tem quase a mesma cultura do povo angolano: gosta de festa, tem uma gastronomia forte, um povo sorridente, apesar de tudo”.  

Yannick Emanuel, de 22 anos, conta que a família chegou ao Brasil em 2014, para morar em São Paulo, mas ele veio para a Maré por influência do irmão. 

“Minha mãe sempre frequentou o Brasil e já tinha essa vontade de morar aqui. A maior diferença que senti ao chegar na Maré foi ter uma comunidade angolana fisicamente mais perto. A agitação, o bairro noturno e com bastante movimentação, parece muito com Luanda”, revela. Hoje, ele trabalha como secretário e assistente de produção na Areninha Herbert Vianna.

Similaridades

A influência cultural do continente africano aparece no Brasil com a chegada dos navios que traficavam pessoas escravizadas. Estima-se que mais de 5 milhões de pessoas foram forçadas a atravessar o oceano Atlântico e, a maioria delas, era da região onde hoje estão os países de Angola e da República Democrática do Congo. 

Em diversos aspectos, é possível observar as similaridades entre as culturas, como a gastronomia, a música, a dança e a religião. O samba, ritmo musical brasileiro conhecido mundialmente, têm raízes do semba, ritmo dos povos bantu. Atualmente, o semba resiste e é um dos ritmos mais ouvidos em Angola.

Capoeira Maré

Outro traço africano da cultura africana e “abrasileirado” é a capoeira, trazida pelos povos de Congo-Angola. A Capoeira Angola, conhecida como capoeira mãe, é praticada em vários pontos da Maré. 

O educador angolano Marco Rabi, de 26 anos, conta que teve o primeiro contato com a capoeira ainda em Angola. Hoje, ele dá aulas para crianças em escolas municipais da Maré. A atividade é uma iniciativa da Luta Pela Paz e da Prefeitura do Rio de Janeiro. 

“Dar aulas para crianças da pré-escola é interessante. Elas são muito genuínas, puras e espontâneas. Elas têm maior facilidade de receber, maior predisposição para aprender do que os adultos”, afirma. 

Embora a capoeira seja patrimônio histórico e esteja na identidade brasileira, Marco revela um dos principais impasses. “O pessoal correlaciona a capoeira com a religião e esse é um dos maiores desafios que a gente tem. É um trabalho árduo explicar para os responsáveis, mas é dessa forma que a gente consegue trabalhar.  Porque as crianças querem participar, mas o responsável fala que ‘não, que a capoeira é de religião de matriz africana’ e, por isso, não pode fazer”, explica.

Recomeços

O Brasil foi o primeiro país a reconhecer a independência de Angola, em novembro de 1975, estreitando os laços diplomáticos entre as duas ex-colônias portuguesas. No mesmo ano, Angola sofreu com o início da guerra civil que acabou apenas em 2002. A guerra, que gerou milhões de refugiados, foi o principal motivo da migração angolana para o Brasil, na década de 1990.

Mario Alexandre conta que além da guerra, outro fator influenciou o fluxo migratório. “Se por um lado tinha a guerra, por outro também tinham as novelas brasileiras que passavam em Luanda, a capital, e mostravam a beleza das praias do Rio de Janeiro. Era um paraíso, e quem não quer morar no paraíso enquanto seu país está em guerra?”, diz.

Racismo à brasileira

A cultura brasileira era exibida para as famílias angolanas, mas a realidade era diferente das relações retratadas na TV. Mário relembra a violência sofrida pelos migrantes na Maré no fim dos anos 1990, quando o então governador Anthony Garotinho, acusou os angolanos de treinar grupos civis armados com táticas de guerra.

“Viemos fugindo da guerra. Quem vem fragilizado de Angola, a última coisa que quer é se associar a qualquer tipo de violência. Viemos por uma vida melhor, por oportunidades e não para causar mais guerra”, relembra Mário.

Na época, o diretor da Associação dos Angolanos no Rio, Francisco Cruz, caracterizou as falas do governador como ”racistas e preconceituosas”. Em 12 de fevereiro de 2000, a então vice-governadora, Benedita da Silva, se encontrou por sua própria iniciativa, com o cônsul de Angola no Rio de Janeiro, Ismael Diogo da Silva e, pediu desculpas em nome do governo.

Os anos passaram, mas pouca coisa mudou. Em 2022, o congolês Moïse Kabagambe foi brutalmente assassinado em um quiosque na Barra da Tijuca. O jovem foi espancado até a morte e, além dos agressores, foi constatada a presença de pessoas assistindo o crime, sem intervir. Os três acusados estão presos e aguardam a data do julgamento.

Longo caminho

Para Mario Alexandre, há um longo caminho a se percorrer quando se trata de políticas públicas para migrantes negros: “O que é difícil no Brasil é a violência com pessoas negras. O mercado quer aparência, né? Aparência branca. Essa parte do país foi um choque muito grande”, desabafa.

De acordo com dados da Polícia Federal, vivem mais de 42 mil migrantes de origem africana no Brasil, e o número aumenta a cada ano. Entretanto, somente em 2023, foi inaugurado um Centro de Atendimento e Referência para Imigrantes (CRAI), no Rio de Janeiro, uma parceria entre a Prefeitura e a Community Organised Relief Effort (Core). A  organização, criada pelos atores de Hollywood Sean Penn e Ann Lee, atua em países com populações em vulnerabilidade.

O turismólogo Mario Alexandre reforça a importância da atuação das associações em apoio aos migrantes: “O Brasil tem barreiras muito difíceis causadas pelo racismo. Na Unaerj, nós atuamos com diversas parcerias para cursos profissionalizantes, oportunidades de trabalho, jovem aprendiz, matrícula escolar para filhos de angolanos, EJA, ou seja, estamos atuando de frente para melhorar a vida dos angolanos que estão aqui”, conta.

Em 2016, os 193 estados-membros da ONU adotaram a Declaração de Nova Iorque para Refugiados e Migrantes (A / RES / 71/1), reconhecendo a necessidade de uma abordagem abrangente para a migração. O documento reconhece a contribuição positiva dos migrantes para o desenvolvimento sustentável e inclusivo e compromete-se a proteger a segurança, a dignidade, os direitos humanos e as liberdades fundamentais de todos os migrantes, independentemente de seu estatuto migratório.

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