MORTE

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“A única certeza que tenho na vida é que um dia vou morrer.”    Ítala; mãe, avó e bisavó.

Durante um tempo em minha vida fui cartomante. Abria os arcanos maiores do Tarô na tentativa de ajudar pessoas que estavam em encruzilhadas na vida e que já haviam esgotado todas as formas lógicas de conseguir uma solução. Acabei desistindo porque a maior parte delas não se interessava em desvendar suas próprias travas e auto boicotes. Queriam permanecer em suas próprias bolhas e arranjar saídas mágicas, sem despender o mínimo esforço para elucidar as mensagens que a totalidade de suas almas enviavam por meio das cartas. Parei, também, porque me sentia inseguro e preocupado com as consequências de minhas interpretações na vida cotidiana de meus consulentes.

Esta pequena digressão na verdade foi para salientar o impacto que um dos arcanos sempre causou quando aparecia numa leitura: o arcano XIII, chamado de “A Morte”. Havia sempre um suspender de respiração, um olhar assustado e, posso intuir, um calafrio de gelar a espinha. Não adiantava arrazoar dizendo que o arcano necessariamente não indicava morte física, mas certamente o fim de um estado de coisas para que um novo paradigma pudesse se estabelecer. Quando surgia a imagem do esqueleto com sua foice a sessão de tarô ficava como que suspensa e o consulente paralisado ante a perspectiva da possibilidade de sua morte física.

Ninguém nos tempos atuais quer meditar ou refletir sobre a morte, apesar da mesma ser um fenômeno natural. Afinal, tudo que vive tem prazo de validade. 

Estou com 61 anos e, um dia, quando estava conversando com minha filha mais velha, preocupado com os rumos de sua vida, disse que, afinal de contas, estava mais próximo de minha morte que de meu nascimento e que, quando eu morresse… Não consegui nem completar o pensamento e Clarinha já havia se encrespado na defensiva. Vira a boca pra lá, deixa de bobagem, não quero nem pensar nisso.

As reações de meus antigos clientes e de minha filha são normais, se levarmos em conta o espírito destes tempos, que baniu a morte da normalidade da vida.

 Nossa atitude diante da morte deveria ser tão natural quanto a aceitação da concepção e do nascimento das pessoas. E, de fato, foi assim durante um longo período da história humana, remontando à Antiguidade, a Idade Média, até o advento da Era Moderna e o triunfo da ciência. Esse estado de coisas é brilhantemente retratado por um historiador de nome Philippe Ariés em seu livro chamado “O Homem diante da Morte”, onde discorre sobre a relação do homem do ocidente com o inevitável fim da vida. Seus estudos constatam que nossos antepassados longínquos pressentiam a chegada da morte e se preparavam para a passagem, despedindo-se de seus entes queridos, perdoando seus inimigos, distribuindo suas posses e até mesmo escolhendo seu local de sepultamento. Não havia nisso nada de maravilhoso. Era apenas um sentimento, uma sensação, de que a morte estava próxima, sendo necessário fechar a conta para poder se despedir em paz. Também poderiam, como anunciação do fim próximo, ocorrer alguns fenômenos não tão naturais, como a aparição de mortos em sonhos ou visões. Instrumentos musicais ou sinos tocando sozinhos, relógios parando subitamente, pancadas fantasmas no chão dos quartos. Mas, de uma maneira geral, na época a que estamos nos referindo não havia esta fronteira tão rígida entre o natural e o prodigioso que vivemos hoje em dia.

Somente a partir do século XVII é que os letrados passaram a considerar esses pressentimentos como superstições populares. As classes instruídas foram as primeiras a perder a percepção dos sinais precursores da morte e o povo mais simples, principalmente o campesinato, o último a fazê-lo, tendo mantido até bem recentemente este de tipo familiar de relação com a morte.

Ariés nos fornece inúmeros exemplos do que ele denomina a “morte domada”, extraídos tanto da literatura quanto de crônicas históricas.

Da literatura cavaleiresca da Idade Média pinça, em diversas obras, o momento em que a morte é percebida por vários guerreiros feridos em batalha. Havia todo um ritual que começava com o posicionamento correto do corpo, efetuado, quando possível, pelo próprio ferido: deitar-se de costas para poder olhar o céu com a cabeça voltada para o oriente e os braços cruzados sobre o peito. Feito isso o cavaleiro encomendava a Deus seus entes queridos, seu rei e superiores hierárquicos, pedia perdão por seus pecados e invocava a misericórdia divina. Muitas vezes escolhia o local de seu próprio sepultamento.

Ariés cita também o trecho de um livro de Soljenitzyn, literato russo: “E eis que agora, indo e vindo na sala do hospital, rememorava a maneira como eles costumavam morrer, esses velhos, no seu canto, lá longe, a beira do rio Korma, tanto os russos como os tártaros ou os udmurtos. Sem fanfarronadas, sem complicações … todos admitiam a morte pacificamente. Não só não retardavam o momento de prestar contas, como ainda se preparavam para ele mansamente e, por antecipação, designavam para quem iria o jumento, a quem o potro, a quem as botas, e se extinguiam com uma espécie de alívio, como se tivessem apenas que mudar de isbá (moradia).”

A morte dando sinais de sua chegada iminente era tão natural que toda forma de morte repentina, como num acidente de caça, num afogamento, na fulminação por um raio e outras era considerada “feia e desonrosa, fazia medo, parecia coisa estranha e monstruosa de que não se ousava falar.”

Hoje achamos romântica a imagem de um moribundo em seu leito, cercado das pessoas que ama, despedindo-se delas antes de seu último suspiro. Isso porque nos acostumamos a tratar a morte como o maior inimigo, terçando todas as armas científicas contra ela até o último e fatal momento. Os moribundos se vão atrelados a máquinas, espetados, entubados, encharcados de toda espécie de drogas e vão solitários em frios quartos de hospitais.

Não, não estou aqui defendendo a não utilização de todos os progressos médicos e científicos. Só queria meditar com vocês, meus leitores, sobre o quanto e até quando deveria se intervir no processo da morte para que o trespasse pudesse ocorrer de forma mais tranquila e serena.

Há pouco tempo, soube de um amigo que morreu consciente, ouvindo música embalado nos braços de uma pessoa muito amada. Internado diversas vezes, desta vez não quis percorrer todo o calvário da hospitalização porque percebeu que sua hora havia chegado. A pessoa que o acompanhou nesse momento relata que a sensação era de muita paz e serenidade.

Termos perdido essa capacidade ancestral de percebermos naturalmente, como os animais, que é chegado o fim de nossa passagem pela Terra é mais um de muitos indícios de que estamos alienados de nosso mundo interior. É mais um sinal de que precisamos desacelerar para restabelecer o contato com nossa alma, este “quantum” imaterial que é primordialmente nosso maior valor. Maior que os bens materiais, que todas as conquistas financeiras e que qualquer progresso profissional.

Marcello Escorel é ator e diretor de teatro há mais de 40 anos. Paralelamente a sua carreira artística estuda de maneira autodidata, desde a adolescência, mitologia, história das religiões e a psicologia analítica de Carl Gustav Jung.

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