“Na verdade, na verdade vos digo que se o grão de trigo não cair na terra e morrer, ficará só; mas se morrer, dará muitos frutos.” Jesus – João 12:24
Por Marcello Escorel em 06/11/2021 às 12h0o
Na coluna passada dei uma pequena pincelada num conteúdo muito difícil de ser explicado: a Alquimia. Resgatada por Jung do limbo da História, foi incorporada em suas teorias psicológicas e hoje pode ser considerada não só a precursora da química moderna como também a ancestral da psicologia analítica. Afirmei que a busca dos alquimistas pela Pedra Filosofal se traduzia como a procura por atingir uma consciência mais vasta que abrangeria tanto o consciente quanto o inconsciente. Esta Grande Obra que era conduzida em seus fornos, alambiques e retortas reproduzia-se passo a passo em suas almas e a medida em que a matéria se transformava transformavam-se também suas personalidades.
O caminho para atingir a Pedra Filosofal, também chamada Elixir da Longa Vida, se desdobrava em três etapas distintas a que chamavam em sequência Nigredo, Albedo e Rubedo, associadas às cores preto, branco e vermelho.
É sobre o primeiro e perigoso estágio que quero inicialmente discorrer. O passo inicial dado pelos alquimistas nesta grande e dificultosa estrada associa-se ao luto, ao desmembramento, a morte, a putrefação, a derrota, ao sofrimento e a todos os demais fenômenos similares que, em conjunto, se colocam sob a denominação latina de “mortificatio”.
Psicologicamente podemos afirmar que o primeiro estágio sombrio desta jornada, empreendida com o propósito de libertar a alma presa na matéria densa, sempre desemboca no sofrimento e morte do ego, que se encontra inflexível e enclausurado em velhas convicções e atitudes que já não servem mais a qualquer propósito a não ser o de promover o estancamento da vida e da espontaneidade.
Certa vez, uma grande amiga questionou o fato de que raramente as pessoas aprendem algo importante para elas através de uma disposição amorosa e que, frequentemente, o fazem por meio de experiências dolorosas. Chegamos juntos à conclusão de que, para tirar alguém da zona ilusória de conforto, do torpor, da complacência consigo mesma e da repetição de comportamentos ultrapassados e nocivos, era quase sempre necessário um grande choque de realidade, que quase sempre se manifesta sob a tutela de uma das categorias classificadas sob a denominação de “mortificatio”.
Neste momento sombrio do processo não sabemos mais quem somos, nem temos o menor vislumbre do que seremos se persistirmos na busca da meta. Vivemos o que São João da Cruz chamou de “noite escura da alma”. A vida “normal” vai seguindo seu curso e é como se não estivéssemos dentro dela. É como se fossemos os espectadores passivos e enlutados assistindo uma peça em que somos os protagonistas, sabendo que nada do que façamos nos tirará do atoleiro de tristeza e que dependemos de uma força maior que nós para escapar do labirinto. É a hora em que assinamos uma declaração de impotência, inferioridade e derrota, em que, ainda vivos, descemos a mansão dos mortos. Perdemos nossa energia porque nos defrontamos com a absoluta necessidade de matar nossa velha personalidade para onde fluíam e se concentravam essas energias. Momentaneamente não temos para onde direcioná-las porque estamos privados de desejo e tudo ao nosso redor perdeu vitalidade e importância. Muitos se perdem nesta passagem difícil, mas aqueles que conseguem suportar suas dores, sua inadequação e falta de propósito sentem que, pouco a pouco, as energias, antes direcionadas para as conquistas no mundo concreto, fluem como um caudal para as regiões desconhecidas e inóspitas de seus mundos interiores. E é este o momento em que começa a se realizar o encontro amoroso entre o consciente e o inconsciente, cuja meta final é a concepção e nascimento do “Filho dos Filósofos”, outro dos muitos nomes da Pedra Filosofal.
Mas primeiro é preciso sofrer o trespasse da morte porque é através dela que passamos a prestar atenção ao inconsciente. Diz o psicólogo Edward F. Edinger em seu livro ‘Anatomia da Psique’ “Prestar atenção ao inconsciente significa tornar a vida miserável de maneira deliberada, a fim de criar condições para que a alma funcione com maior liberdade. Nada tem a ver com o masoquismo, afigurando-se antes como uma participação consciente no processo de atualização da Divindade. Nas palavras de Meister Eckart (teólogo, filósofo e místico alemão nascido em 1260) ‘O sofrimento é por si só uma preparação suficiente para que Deus habite o coração do homem … Deus está sempre com o homem que sofre; como Ele mesmo declarou pela boca do profeta: ‘Aquele que estiver coberto de tristeza, me terá consigo.’ (Provavelmente Jer 31:25)”
Mas viver a morte e as trevas na superfície significa pela lei dos contrários adubar a vida e a luz nos recessos profundos da alma. É preciso suportarmos a dor para termos um vislumbre da totalidade, que será incorporada em nossa vida na última etapa da obra chamada Rubedo.
Percebemos, porém, que o ambiente em que vivemos não somente não colabora, como é propício para escorraçar toda tentativa de viver plenamente uma ‘mortificatio’. Somos bombardeados a todo momento por propagandas onde pessoas extremamente ‘luminosas’ declaram sua grande felicidade pela compra de um imóvel, de um carro, de um eletrodoméstico; pessoas que demonstram seu gáudio sublime ao realizar viagens estonteantes em cruzeiros ou excursões. O mundo moderno expõe toda sua ojeriza ao fenômeno da ‘mortificatio’ mas não explica porque todas as conquistas materiais não conseguem alavancar a felicidade verdadeira que é o conhecimento de nosso propósito e a pacificação dos opostos dentro de nossa alma. A modernidade é frívola, superficial, monetarista, e em sua cegueira colocou para escanteio a presença do Deus Vivo, transformando a religião em um toma lá dá cá onde a meta já não é mais a salvação da alma, mas a conquista de bens materiais. Época árida e infeliz, mas que passará custe o tempo que precisar, porque é certo que depois da Nigredo que vivenciamos passaremos, segundo os alquimistas, para a segunda etapa do processo: a Albedo, quando a aurora anunciará o nascimento de um novo sol, um novo ego rejuvenescido, que será preparado, através da luz de um novo conhecimento para adentrar na última etapa, chamada Rubedo. Nela, o conhecimento acumulado na fase anterior será transformado no vermelho sangue da vida e nos tornaremos finalmente o berço propício para o nascimento de Deus em nós.
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Marcello Escorel é ator e diretor de teatro há mais de 40 anos. Paralelamente a sua carreira artística estuda de maneira autodidata, desde a adolescência, mitologia, história das religiões e a psicologia analítica de Carl Gustav Jung.