Direitos iguais para o lazer
Hélio Euclides
“Homem fazendo pole dance é igual mulher jogando futebol, não tem graça”, disse Arnaldo Saccomani. “Também não acho graça na mulher jogando bola, pois futebol é muito bruto”, respondeu o apresentador Carlos Massa. Essa foi a conversa ocorrida no Programa do Ratinho, de 30 de outubro, em rede nacional. Esse caso mostra que, em pleno 2017, a mulher ainda precisa conquistar o seu espaço na sociedade. Uma dessas áreas, na qual a mulher sofre muito preconceito, é o esporte, principalmente o futebol. Ele se evidencia na falta de investimento, nos estigmas e na seriedade com que tratam esses segmentos.
Alexandre Pichetti, popular Pichetti, professor de futebol, relata que sua escolinha feminina terminou, porque as meninas casaram e saíram.
Entende que possa ter falta de apoio dos companheiros, algo que as desmotiva. No mundo masculino acontece o contrário, o homem, mesmo casado, não abandona as “peladas”. Alessandra Antunes, de 33 anos, joga futebol desde os 20, hoje bate-bola numa quadra da Nova Holanda. A jogadora lembra que, no início do casamento, seu marido não gostava. “Ele me conheceu jogando, então aceitou. Aqui na favela há discriminação e já ouvimos muitas gracinhas e críticas, mas o que fica são os elogios. Se não fosse o preconceito, o futebol feminino estaria lá em cima. Queremos ser valorizadas, aqui e em outros lugares. Desejamos a igualdade, somos capazes. O futebol não foi feito só para os homens”, destaca.
Alessandra tem o mesmo sobrenome do craque Zico e, na quadra, se inspira em Marta e companhia. Ela jogou na Portuguesa e no São Cristóvão, mas se sente realizada tocando bola na comunidade onde mora. “Apesar de tudo, nunca deixei de ser do futebol feminino na Nova Holanda, sou uma das antigas. Futebol é o esporte que gosto”, revela ela, que tem duas filhas e uma neta. A mais antiga da escolinha é Jaqueline Conceição, de 46 anos, que não pretende parar. “Quando novinha, joguei no Bonsucesso. Depois vim para cá, onde jogo até hoje, porque tenho garra e distrai a mente”, afirma. Ela também relata discriminação. “Existe o preconceito, nos chamam de homossexual, mas nunca esquentei. O que precisamos é de apoio, pois faltam coletes, caneleiras, bola, meiões, chuteiras e protetores para os seios”, reclama.
O professor dessa turma de 40 meninas adultas e 12 adolescentes é Flávio Luiz dos Santos, que credita à escolinha Vida em Excelência o título de escola de futebol feminino mais antiga, com 26 anos. “Tem escolinha feminina que acaba, porque não tem raiz. Eu vejo o dia a dia das atletas, entendo elas, pois umas são casadas e chefes de família. Trabalhei 17 anos na Vila Olímpica, onde aprendi o que ensino. Também fiz curso de primeiros socorros, por isso sei que se estão com febre, não podem jogar para evitar uma convulsão”, detalha. Ele, igualmente à aluna, reclama da falta de recursos. “Não cobro taxa. Por outro lado, não tenho dinheiro, e não é difícil ver algumas jogando descalças. Aqui só tem uma bola, se furar vai dar ruim”, confessa. Para manter a escolinha e sobreviver, Flávio atua no ramo de som para festa. “Fiz prova para salva-vidas e passei, só não segui carreira para não deixar a escolinha”, desabafa. “Quando jogo, me sinto melhor, não tem como explicar a sensação. Uma pena que no Brasil, para ser profissional, é preciso ter sorte e conhecimento. Se fôssemos homens, teríamos mais espaço e oportunidades”, diz Joelle Pereira de Azevedo, que conheceu a companheira no campo e elas só ficam separadas quando disputam a bola. “Sonho em ser jogadora, receberia até salário mínimo. Aqui no Brasil falta espaço”, diz Carolaine Ferreira Scola.
As Destemidas correm na frente
Um encontro entre a jornalista Carol Barcellos e a instituição Luta Pela Paz proporcionou o nascimento do projeto-piloto Destemidas. Com essa união, foi possível implementar esse projeto de corrida, que tem como objetivo fortalecer a imagem feminina e diminuir a desigualdade de gênero, visando desconstruir o estereótipo da mulher frágil e submissa existente em nossa sociedade. Além da promoção da prática esportiva, o projeto procura trabalhar questões de gênero, com palestras sobre direitos sexuais e reprodutivos, preconceito, mercado de trabalho e violência contra a mulher.
O projeto reúne preparador físico, nutricionista, psicólogo e ortopedista. São 30 atletas, de 14 a 29 anos, que são preparadas para um alto rendimento específico para corridas profissionais. “Os treinos são no Luta pela Paz, Vila Olímpica e Marina da Glória. Uma pena que falta área de lazer na Maré, para a prática de corrida”, lamenta Ana Caroline Belo, coordenadora do Projeto Atletas da Paz.
“Antes, não corria, pois pratico judô e tinha medo de desgastar o joelho. Tive o incentivo e saí da zona de conforto. Hoje percebo que a corrida melhorou o meu desempenho, e já fui campeã de judô”, avalia Raissa Souza de Lima, de 21 anos, aluna e estagiária. Ela conta que há encontros mensais com a Carol, num ambiente de amizade. “É um mito que muitas mulheres juntas só fazem fofoca. Aqui se tornou um grupo de amigas, que incentiva uma a outra”, avalia. “Somos destemidas, mulheres fortes, que enfrentam provas que nos inspiram, o que mostra que nunca é tarde para superar os obstáculos e as dificuldades do corpo, o importante é o esforço, afirma Gabriela de Souza Vidal, de 18 anos que, além da corrida, é aluna de Muay Thai.
Uma regra para a harmonia
A Vila Olímpica da Maré também tem o seu futebol feminino, que foi possível pela parceria com a Fundação FC Barcelona. Ele começou em 2014, com o projeto FutbolNet, que não trabalha só o ponto de vista técnico, mas inclui o aspecto social. O vencedor não é escolhido pelo alto rendimento e, sim, por critérios socioeducativos. Na Maré, são sete pessoas na equipe, três professores, um estagiário, dois jovens aprendizes, um coordenador administrativo e um coordenador metodológico.
“O objetivo é a integração para trabalhar juntos. Para isso, usamos os cinco valores que o Barcelona utiliza: respeito, trabalho em equipe, humildade, esforço e superação. Discutimos a questão de gênero e resolução de conflitos, por meio do diálogo. O foco, aqui na Maré, é a diminuição da violência”, expõe Rayana Santuchi, professora e assessora metodológica. No projeto, as alunas ainda praticam outros esportes, como natação, rugby e ginástica olímpica.
Antes de tudo, as alunas escolhem regras que facilitam o jogo, deixam a partida mais justa e mais limpa. Se cria uma autonomia. Não há árbitro e, sim mediadores, que fiscalizam as regras que elas criaram. A partida é realizada em três tempos: diálogo, reflexão e uma visão de todos. “Ao final, não vale só a pontuação, mas a soma do respeito e das regras. Quem tem valores é quem ganha, uma relação do jogar com a vida”, observa Juliana Lima, estagiária.
Camila Crispin, de 16 anos, é aluna, e resume o projeto com a palavra respeito. “Na minha casa sempre havia agressão. Agora vejo as coisas e não quero discutir, aprendi a ouvir. No campo, antes, segurava muito a bola, agora trabalho em equipe. Eu competia e vivia estressada, agora me divirto”, admite. As aulas acontecem de terça a sábado, mas o treino feminino ocorre nas quartas e sextas, às 16 horas. Ainda são poucas meninas, apenas dez, então é necessário fazer um misto”.