Racismo e desigualdades de classe são questões comuns a mulheres da América Latina: as percepções de uma comunicadora popular da Maré sobre o ELLA – 4º Encontro de Mulheres da América Latina
Maré de Notícias #96 – janeiro de 2019
Por: Jéssica Pires
Dos meus 27 anos, todos eles eu vivi tendo como referência as mulheres
da Maré. Da minha mãe à Marielle Franco. Faço parte de uma Produtora de
Comunicação daqui também, a AMaréVê. A Produtora é formada por quatro jovens
mulheres negras da Maré e trabalhamos com comunicação, dando outros
significados às narrativas mal construídas sobre o nosso território. E, no fim
de 2018, fui convidada para participar de um Encontro de Mulheres da América
Latina, o ELLA.
O Encontro aconteceu na cidade de La Plata,
que fica a 56 km de Buenos Aires, capital da Argentina. Os primeiros habitantes
de La Plata foram pedreiros italianos, que imigraram para a região para
construir os edifícios da cidade. De acordo com dados divulgados pelo Jornal EL País, a Argentina, atualmente, possui
apenas 3% da população negra, e percebemos isso nas ruas de La Plata. Um
cenário completamente diferente para nós.
O ELLA aconteceu de 7 a 10 de dezembro, na Faculdade de Humanidades da Universidade de La Plata. Mais de mil mulheres de cada canto do continente ocuparam a Universidade, consequentemente frequentada, em sua maioria, por pessoas brancas, para discutir pautas sobre os direitos das mulheres. Foram discutidos violência, trabalho, maternidade, políticas públicas, sexualidade, comunicação e outros temas entre negras, indígenas, brancas, gordas, magras, lésbicas, transexuais, travestis, ciganas, católicas, de matrizes africanas, evangélicas, campesinas, periféricas, urbanas, com deficiência, encarceradas e muitas outras. Uma diversidade enorme. Isso, sim, nos lembrou a diversidade da nossa Maré.
Essa foi a quarta edição do Encontro. Fomos em uma caravana, eu e Suzane Santos, comunicadora popular da Maré e também uma das integrantes da AMaréVê, com mais 60 mulheres do Rio de Janeiro e São Paulo. A caravana levou cerca de 50 horas para percorrer os mais de 2.500 km entre o Rio e La Plata (só essa experiência já valeria ser compartilhada com vocês!).
A Argentina vive um momento político conturbado, com o retorno do neoliberalismo, uma proposta de governo que diminui a intervenção do Estado na economia. E as mulheres têm exercido um papel muito importante e inspirador na luta pela garantia de direitos na região. Esse foi um dos motivos de o país ter sido escolhido para essa edição do ELLA, de acordo com as organizadoras. O curioso foi irmos até lá, para perceber que muitas das questões das mulheres negras, indígenas e transexuais dos países da América Latina são parecidas a das Mulheres do Brasil e da Maré. E é sobre isso que preciso falar aqui.
Segundo informações da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), vinculada à Organização das Nações Unidas (ONU), a cada 10 homicídios de mulheres cometidos nos países da América Latina e do Caribe, quatro ocorreram no Brasil. Em números registrados, isso significa que ao menos 2.795 mulheres foram assassinadas na região, em 2017, apenas pelo fato de serem mulheres. Desse total, 1.133 feminicídios (como é chamado esse tipo de assassinato) foram registrados no Brasil. Deste número, a grande maioria são mulheres negras e pobres, como nós.
Durante os quatro dias do Encontro, vivemos trocas incríveis, mas também sentimos na pele o reflexo desses dados presentes nas estruturas da sociedade. Mulheres negras, indígenas e transexuais passaram por situações de discriminação durante o evento. A nossa resposta foi a escrita de um Manifesto e um pedido de resposta da organização do Encontro e um ato marcante, que encerrou o ELLA e culminou na fundação de uma Rede Latino-Americana de Mulheres Negras, Indígenas e Transexuais. Entendemos que erramos ao imaginar que episódios como esse não aconteceriam em ambientes assim e tomamos consciência da importância de nos organizarmos e mobilizarmos para nos fortalecermos.
O aprendizado que fica desse Encontro com as mulheres da América Latina é que as desigualdades entre homens e mulheres ainda são enormes, e as que existem entre mulheres de raças e classes diferentes também. E nós devemos conversar. Nós, mulheres da Maré, mulheres negras, indígenas, transexuais devemos, cada vez mais, nos ouvir, para identificar e construir formas de nos proteger e fortalecer. Fortalecer, antes de virarmos dados e estatísticas.