Cria da Vila do João, Retinto Fecar conta que desde criança dançava com sua mãe, onde nasceu a vontade de estar perto das ações culturais da favela
Rahzel Alec*
A favela é um território de criatividade: aqui nascem os crias, as músicas, as comidas típicas, a farofada, as gambiarras e sempre tem espaço para um novo puxadinho. O Conjunto de Favelas da Maré não fica fora disso e, mesmo com 16 favelas e 140 mil habitantes, quem vê de fora consegue captar que essa terra tem espaço para todo mundo e mais um pouco. Assim como outros territórios de periferia que foram marginalizados desde o seu início, a Maré também precisou se movimentar para lutar contra o racismo, a violência policial e outras dores que afetam todos os moradores, como a falta de água e o acesso à saúde de qualidade.
A partir das iniciativas culturais, de esporte, cuidado e incidência política que surgiram ao longo dos anos, através dos próprios moradores, muitos crias tiveram a oportunidade de enxergar novos caminhos para preservar a identidade das favelas a partir de suas histórias e das histórias de suas famílias e, com isso, muitas dessas produções e iniciativas que pensam no bem estar, na criatividade e na liberdade do favelado surgiram dentro desse território.
Iniciativas como as primeiras Associações de Moradores, os encontros e paradas LGBTIA+ da favela, os coletivos que surgiram ao longo dos anos e instituições como o CEASM, Luta pela Paz, Conexão G, e a Redes da Maré, foram importantes para fortalecer gerações de crias que na Maré se criaram, na Maré se fortaleceram e na Maré transacionaram.
Retinto Fêrcar, de 28 anos é dançarina, artersã, performer e cria da Vila do João. Ela conta que desde criança dançava com sua mãe nas festas de família, onde nasceu a vontade de estar perto das ações culturais da favela, e foi no Centro de Referência de Mulheres da Maré que Retinto teve seu primeiro acesso ao teatro. O desejo preocupava seu pai, que logo a inseriu em uma escolinha de futebol para que ela “fizesse coisas de menino”.
A Escola Municipal Teotônio, no Conjunto Esperança, foi um espaço em potencial para incentivar a estudante a se jogar de vez no mundo da dança. O corpo escolar ensaiava apresentações e organizou o 1º Concurso de Dança das Escolas, onde a Teotônio ganhou o primeiro lugar nas duas edições.
Mesmo tendo uma boa relação com a arte e cultura dentro da favela, a vivência na escola e na rua de casa tinha como marca a LGBTIfobia. Aos 13 anos, Retinto já precisava lidar com os xingamentos e algumas agressões vindas de crianças vizinhas, colegas de classe e até adultos. “Comecei a me impor quando percebi que eu não era obrigada a aceitar essas agressões”
Através de um projeto social na Vila do Pinheiro, Retinto passou a ter aulas de hip-hop e conhecer mais sobre as musicalidades da cultura negra brasileira e internacional. Seu interesse pelo carnaval surgiu quando, ainda na época da escola, conheceu o projeto Usina de Cidadania, que atuava em Manguinhos e tinha como objetivo introduzir jovens no conhecimento das artes como dança, teatro e percussão, onde seguiu por alguns anos.
A curiosidade pela dança afro foi um motivador para conhecer novos lugares e em uma dessas oportunidades surgiu o convite para ensaiar junto do Bloco Orunmila – bloco de Carnaval que ressalta a importância da cultura afro-brasileira, apadrinhado pelo bloco do Ilê Ayê.
No início o comprometimento com os ensaios e a maquiagem das companheiras de bloco. Retinto não tinha muito conhecimento sobre maquiagem em si, mas a artista gostava de enxergar como suas companheiras de dança ficariam com alguns adereços. Foi quando aprendeu sobre as amarrações de turbante e sua importância para a Comunidade negra.
A autoestima veio a partir daí, em contato com outras pessoas negras, de religião afro e que também eram da dança. A artesã conseguiu perceber que não estava tão deslocada quanto pensava.
“Foi um choque de realidade porque eu fazia nas meninas mas eu mesma não usava. Eu saída de casa com os panos dentro da bolsa e quando chegava na Avenida Brasil eu amarrava pra ir pros eventos. Era uó mas foi assim que aprendi a fazer um turbantão em qualquer lugar e ficar bonita na rua”, conta Retinto, que há época tinha receio do preconceito dos vizinhos e outros moradores em relação às amarrações de turbante, por causa dos casos conhecidos por agressões a pessoas de religiões de matriz africana.
“O turbante foi algo que entrou na minha vida e se tornou a minha marca registrada. E foi através dele que eu consegui me conectar com várias pessoas da minha favela”, conta a modelo e performer, que a passou a conciliar sua carreira como modelo e dançarine com os Workshops sobre amarração dentro e fora da Maré.
Em 2018 a Maré sofreu uma mega operação policial durante e um dos focos da operação foi próximo ao Espaço Infantil Éder Carbonera, na Vila do João. O ato impactou a vida de dezenas de crianças e funcionários que estavam na escola durante a incursão e presenciaram os disparos. Na mesma semana Retinto foi chamada para dar uma atividade sobre a população negra com as crianças e teve a ideia de contar uma história enquanto os ensinava a amarrar um turbante. “Eu contava a história de dois coleguinhas que estavam afastados e precisavam se encontrar. Foi muito interessante fazer essa atividade nesse momento porque as crianças estavam muito abaladas com o que aconteceu e essa Foi a minha forma de conseguir dialogar com eles sobre o racismo e também sobre a estética negra”, conta a artista, que pontuou o sucesso da atividade entre os mini crias e a vontade de continuar produzindo contos, histórias e outros materiais sobre o racismo à brasileira, que também converse com as crianças da favela.
Inspirada nos turbantes e adereços que começou a construir para os desfiles dos blocos afro, a artista transformou algumas ideias em peças complementares para as roupas utilizadas pelas suas companheiras de dança, criando as Viseiras. Enfeitadas com pedras de búzios, palhas e outros elementos afro referenciados, as peças, que são leves e criativas, trazem referências da cultura africana.
A partir das ideias desenvolvidas para as Viseiras surgiram as suas primeiras headpieces ou Cabeça, como prefere chamar. As Cabeças são peças inspiradas na simbologia da coroa em diferentes culturas, elas trazem cores elementares e outras referências da cultura negra têm ganhado destaque em ensaios fotográficos e em performances de artistas negros e LGBTQIA de dentro e de fora do Rio de Janeiro. Recentemente, a Cabeça Hórus foi prêmio da DeVeras Ball, evento que aconteceu no final de agosto deste ano, no Museu da Maré. O evento, promovido pela Casa de Laffond reuniu a Comunidade Ballroom Rio, uma cena artística criada e movimentada por pessoas negras e LGBTI+, que nasceu em Nova York entre os anos 30 e 40 e tem sido popularizada no Brasil desde 2015, através de batalhas de dança como vogue femme e old way.
A comunidade artistica do Rio de Janeiro tem protagonistas de diversas favelas, inclusive da Maré, com lendas como a Legendary Imperatriz Lua Brainer 007, que é uma travesti negra cria da Nova Holanda e Legendary Kill Bill, que é bicha preta cria do Parque União. O evento teve como tema principal uma homenagem a Jorge Laffond e contou com sete categorias de performance, canto e dança, além da categoria face, que tem o objetivo de convidar pessoas a performarem para o público e os jurades a face mais bonita.
“Foi forte! Eu acredito muito nos artistas que tem dentro da Maré e fomentar um evento como a DeVeras Ball e poder trazer outros artistas de fora do território pro Museu da Maré, pra contar a história do território de onde eu sou cria é muito representativo. Já até me perguntaram quando vai ter de novo.” conta Retinta, que na Ballroom tem o nome e título de Star Princess Aziza Laffond.
*Rahzel é comunicador e produziu essa reportagem para o projeto Cores Marés, do Maré de Notícias, criado com o apoio com apoio da Redes da Maré e do Fundo Positivo.