Por Eliana Sousa e Silva em 08/03/2022 às 09h00
São muitas e diferentes razões por que as mulheres lutam mundo afora. A cada dia 8 de março, matérias nas mídias e diversos eventos nos chamam atenção para os desafios que bilhões de mulheres ao redor do mundo vivem cotidianamente, em diferentes níveis e maneiras. O Dia Internacional da Mulher pode, também, ser um momento de reflexão sobre o sentido e a importância desta data que, mundialmente, evoca a condição desigual e histórica das mulheres, quando comparada à dos homens.
Ressalto neste texto o processo de luta de mulheres de favelas e periferias, na sua maioria negras; elas são, de modo particular, afetadas nos seus direitos mais básicos desde o momento em que são geradas. Nessa perspectiva, cabe lembrar que a tão propagada igualdade de gênero, algo que muitos movimentos de mulheres buscam alcançar, é algo que, muitas vezes, não inclui essas mulheres e, tampouco, seus resultados impactam suas vidas.
Contudo, isso não significa que as mulheres que vivem nas favelas e periferias deixaram de criar formas próprias de atuação e liderança nas lutas que protagonizaram por mudanças em diversos campos das suas vidas. Entendo que os feminismos, como movimentos de luta, foram fundamentais para a materialização de muitas demandas das mulheres ao longo do tempo. Mas é preciso reconhecer que essas lutas, muitas vezes, não incorporaram necessidades e bandeiras de grupos específicos de mulheres.
As ondas que caracterizam o feminismo no tempo buscaram o direito à participação política das mulheres e a garantia do voto feminino; reivindicaram direitos reprodutivos e a sexualidade como algo prioritário. Em uma terceira onda, o feminismo mostrou que não temos como discutir os direitos das mulheres sem que sejam consideradas as suas condições de vida, sexualidade e raça conjuntamente.
Esta perspectiva escancara, sem dúvida, os desafios que temos para agir a partir de um olhar que rompa com as desigualdades que se impõem nas variadas formas de ser mulher. É neste olhar ampliado que precisamos reconhecer que não é mais possível aceitar as violências que acometem mulheres trans pelo simples fato de elas assumirem essa condição no mundo. Não há mais como pensar sobre essas mulheres fora do lugar feminino no qual se colocam. Não vejo como sermos feministas e não nos reconhecermos na opressão e fobia que passam essas mulheres, ao longo de suas vidas, para garantirem o seu lugar no mundo.
Neste momento, é importante lembrar a trajetória da Cristiane Rodrigues da Costa, mulher trans moradora da Nova Holanda (uma das 16 favelas da Maré, pela forma como afirmou seu lugar no mundo. Cris, como era conhecida, morreu há um mês, atropelada na Avenida Brasil. Ao nascer, lhe deram o nome de Cristiano Rodrigues da Costa. Desde a infância, como contou em uma entrevista, ela se reconhecia num corpo feminino; queria que seu nome fosse outro. Lutou muito, inclusive junto à sua família, para afirmar seus desejos de viver como acreditava. Conseguiu, apesar da luta para viver e não ser violentada e xingada, como aconteceu muitas vezes. Uma mulher negra que sofreu demais para ser respeitada e reconhecida na sua potência. De forma digna, permaneceu nos seus propósitos e seguiu os seus próprios passos, apesar de ter sofrido violência física muitas vezes.
Quando olho para a trajetória da Cris e vejo a potência da sua afirmação como pessoa e mulher, me pergunto: por que ela sofria tanto para afirmar o que era, o que desejava ser? Por que a sua vida e maneira de ser incomodava tantas pessoas? A resposta a essas e outras inquietações que carrego ao pensar sobre as razões (se é que elas existem) que levam uma parte significativa da sociedade a desrespeitar mulheres e suas formas de existir está no racismo, na ignorância e no conservadorismo que tanto estruturam a sociedade brasileira. Por isso eu acredito, de forma profunda, que não há vida, não há modelos de existência sustentável que não passe pela ação das mulheres.
Eliana Sousa Silva é fundadora e diretora da Redes da Maré e doutora em serviço social