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O abuso sexual de crianças e adolescentes além das estatísticas

Como é possível combater um crime que muitas vezes passa despercebido?

João Ker

De acordo com dados levantados pelo Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro, 1.517 mulheres foram sexualmente violentadas apenas nos 4 primeiros meses de 2017.  684 eram crianças de até 13 anos. Mas números não são o suficiente para ilustrar essa realidade, sobretudo aquela enfrentada por quem vive em comunidades periféricas da Capital fluminense. As nuances e variáveis entre um caso e outro não podem ser generalizadas apenas em estatísticas, mesmo quando mostram que somente na região do Complexo da Maré as denúncias ouvidas chegaram a 47 no último levantamento.

“É muito fácil generalizar e não investigar os dados, mas isso é um discurso usado por quem não quer ou não aguenta mergulhar nessa história”, frisa Denise Valéria Montezuma, Psicóloga atuante no Conselho Tutelar de Bonsucesso e que atende ao Complexo da Maré desde 2013. Ela conta que, em boa parte dos crimes, a criança não é capaz de identificar ou até mesmo entender o abuso. “O assédio é muito forte e é por onde eu acho que a discussão deve partir, porque muitas vezes esse tipo de violência não passa pelo viés da denúncia”, explica.

Os motivos pelos quais crianças e adolescentes não relatam o abuso são vários e, de acordo com Denise, o tabu que a educação sexual tem no âmbito familiar é um dos principais responsáveis para que esse segredo se perpetue. Principalmente porque, como aponta o Dossiê da Mulher, 36% dos casos são cometidos por algum parente, sendo a figura paterna – pai ou padrasto – a mais comum. “É um tabu mesmo. São ataques bem sutis e, quando [a vítima] tenta falar, [o abusador] já fez a cabeça da mãe. Muitas vezes com medo de destruir a família, a menina fica quieta e cria ódio da mãe pela negligência. A mãe, por sua vez, se reconhece no erro, na escolha de ter um filho com o homem errado e de não ter visto a situação. E assim o abuso se perpetua”, aponta a Psicóloga.

A vergonha, o medo e a culpa são características recorrentes entre os casos que chegam até o Conselho Tutelar. “O abusador sempre tenta prejudicar a imagem da adolescente, isolando a menina e criando conflito entre ela e os familiares. Ele cria uma situação na qual se faz de bonzinho e de amigo, desqualificando a menina”, explica Denise, que ainda afirma: “o Conselho não tem papel de polícia. O nosso papel é cuidar, zelar e proteger a criança e o adolescente. A violência no ambiente doméstico tem essa prerrogativa de tratar a mulher sem precisar da queixa. Nós empoderamos e damos autonomia com dignidade, para ela poder sair desse papel e desse lugar, sem destruir a família”.

Não à toa, o Conselho Tutelar é o primeiro Órgão acionado quando as denúncias chegam à Defensoria Pública por meio do Disque 100, como explica Eufrásia Souza. Atuante no tema há 22 anos, a Coordenadora de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente explica: “o mais importante é preservar a vítima e, se necessário, afastar esse agressor, algo que é previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Principalmente se for alguém da família. Se não for possível, a primeira medida é colocá-la em outro local sem expô-la. Nós, inclusive, acionamos a Delegacia da Criança e do Adolescente Vítima (DCAV) para a apuração da responsabilidade”, esclarece e acrescenta que a pena para esse tipo de crime pode chegar a 15 anos de prisão.

 

O Papel da Escola na percepção dos sinais

Renata Costa, da 4ª Coordenadoria Regional de Educação, trabalha com moradores do Complexo da Maré há 15 anos e explica que o Órgão presta todos os tipos de suporte necessários às instituições escolares: “se lá eles não sabem o procedimento, nós auxiliamos, de forma pedagógica.” Ela conta que as escolas têm um comprometimento com a educação sexual dessas jovens desde o 4º ano: “no conteúdo de Ciências, os professores abordam o corpo humano de forma bem específica. Quando é algo voltado para a sexualidade ou ligado à proteção do corpo, nós fazemos parcerias com o Conselho Tutelar e com a Clínica da Família, que também falam sobre cuidado e preservação, com foco na saúde”.

A Redes da Maré também tem acompanhado de perto a forma como crianças e adolescentes se expressam e reagem quando o assunto discutido durante as oficinas é relacionado à sexualidade e/ou ao abuso. “[As crianças] não chegam a fazer a denúncia. Durante o trabalho, nós abordamos muito a questão dos direitos e da literatura. A partir disso, surge algo que é mais um compartilhar que uma queixa. Nós, então, registramos esse relato e damos sequência ao apoio e tratamento do caso”, explica Inês Cristina Di Mare Salles, responsável pelo projeto de educação Nenhum a Menos.

De segunda a sexta-feira, Inês recebe até 20 crianças na Lona Cultural da Maré, para atividades pedagógicas complementares, sempre focando em temas que os mobilizam e, ocasionalmente, partem deles mesmos. “Muitas famílias vêm de religiões em que falar sobre sexo é difícil e que não deixa a criança à vontade para perguntar. Nós, então, assumimos essa responsabilidade. Contamos o que outras meninas estão fazendo para combater o problema e trabalhamos a noção de que mesmo sendo favela, a Maré faz parte da cidade e tem seus direitos. A partir daí, elas sentem as relações de poder e, principalmente, que isso pode mudar. Não é uma mudança simples ou fácil”, explica.

O trabalho é direcionado para a conscientização do problema e as formas de combate possíveis para essas crianças, principalmente a busca de um refúgio seguro em meio à comunidade e o incentivo ao diálogo, seja com a própria rede de tecedores da ONG, com os professores, assistentes sociais ou qualquer adulto em quem elas confiem. “Sentimos que isso ajudou até os meninos, já que dentro dessa cultura patriarcal eles sentem que não podem falar. É muito interessante ver que os encaminhamentos e o diálogo com um profissional preparado vão construindo potências e as coisas vão se reconfigurando”, aponta Inês.

 

Abuso disfarçado de consentimento

R M, diretora de um colégio no Complexo da Maré que atende até o 6º ano, preferiu manter-se anônima, mas nega ter vivenciado qualquer tipo de denúncia ou caso dessa natureza na escola que dirige. O que ela percebe, entretanto, é uma configuração igualmente alarmante: jovens de 12 a 14 anos já estão iniciadas sexualmente. “Algumas vezes, a própria família sabe e até incentiva essa postura”, destaca a Pedagoga.

O quadro também é percebido por P Y, enfermeira que trabalha em um dos Postos de Saúde da Família na região há mais de 4 anos, e estima que,  das 48  gestantes atendidas, 80% são menores de idade. “Nenhuma delas se considera violentada, todas dizem que consentiram o ato. O que eu percebo é que essa questão muitas vezes está atrelada ao status que essa menina ganha ao estar saindo com esse ou com aquele cara. No geral, percebe-se que é um ciclo, incentivado muitas vezes pela própria mãe, que já passou por essa situação e não vê outra forma de saída”, esclarece.

A Psicóloga explica que, por mais que essas situações ocorram sob a alcunha de “consensuais”, elas raramente o são. “Os hormônios começam a trabalhar em certa idade e a criança ou a adolescente começa a querer aquilo, mas na realidade ela não sabe lidar com isso, porque ainda é muito imatura. Garotas de 14 e 15 anos são realmente inocentes, e acabam sendo estupradas ou se colocando em situações que elas não sabem o que significam”, ressalta, e alerta: “a pessoa fica depressiva. Se a família não percebe, ela já pensa que ninguém liga pra ela e começa a se envolver com drogas, quer se suicidar, é tomada por uma tristeza que não tem fim e acaba revoltada. Quando é mais velha então, se acha suja. E o mesmo acontece com meninos”, explica.

Perante a Lei, entretanto, a questão de a vítima acreditar que o ato sexual tenha sido “consensual” ou não, é questionável. Como Eufrásia Souza ressalta: “mesmo com consentimento, a relação sexual com um vulnerável – meninas de até 14 anos – pode levar a até 15 anos de prisão. Basta a criança falar”.

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