“Ói, olhe o Mal, vem de braços e abraços com o Bem num romance astral.” (Trem das sete horas – Raul Seixas)
Por Marcello Escorel em23/10/2021 às 08h41
O mar é um símbolo universal do inconsciente. É no mar interior do útero de nossas mães que nosso corpo é formado e, mergulhados lá dentro experienciamos uma vida compartilhada. Não somos ainda criaturas individualizadas. Depois do parto, apesar de já possuirmos um corpo diferenciado, curtimos ainda um longo tempo num estado de semiconsciência. Não sabemos o porquê de nossos desconfortos que só nossas mães conseguem distinguir como sono, dor ou fome. Isso porque o nosso eu ainda não está totalmente formado. O ser humano é um projeto que se desenvolve muito lentamente.
Em todas ou quase todas as cosmologias que tratam da criação do mundo encontramos um estágio inicial de caos, uma massa confusa onde não se distinguem as coisas umas das outras. O pontapé inicial de qualquer deus criador é um ato de separação. O que estava unido deve ser dividido para vir a ter existência particular. É assim que surgem os opostos, essenciais para a fundamentação do criado.
As cosmologias são um paralelo muito claro da evolução de nossa individualidade. Nossas almas repetem o mesmo processo. A construção do ego individual, antes imerso e indistinguível de outros fatores psíquicos, requer que abandonemos o estado de semiconsciência infantil, isso se dando através da vivência, por vezes excruciante, dos opostos, quando começamos a desabrochar para o conhecimento da escolha voluntária do que “somos” e do que “não somos”. Abandonamos o conforto do colo e do berço diretamente para o confronto das dualidades: luz e treva, conhecimento e ignorância, dor e prazer, inferioridade e superioridade, culpa e redenção … e também o mais aterrador dos opostos, o bem e o mal, do qual falaremos mais tarde.
Os opostos funcionam na alma como um dínamo e sua dança produz a energia necessária para que nos tornemos cada vez mais humanos e singulares. Não poderia ser diferente. Todas as energias conhecidas dependem de um certo tipo de polaridade para poderem fluir. Como, por exemplo, a energia elétrica que é gerada quando se estabelece uma relação entre um polo negativo e um polo positivo.
Na primeira metade de nossa vida usamos a energia dos opostos para nos ajustar à sociedade, conquistando formas de nos sustentar, escolhendo nossas profissões e grupos de pertencimento, parceiros e\ou parceiras. Neste momento de extroversão os opostos, geralmente, estão fora de nós, projetados no mundo concreto.
Quando amadurecemos e já somos parte integrante do ser social, tendo já uma carreira consolidada e família própria, a tendência, se não a ignorarmos, é a de deixar de relegar aos outros nossas inferioridades e todo o rol de qualidades que rejeitamos como “não nossos”. Assim, adquirimos a consciência dos opostos dentro de nós, apesar de escolhermos vivenciar concretamente alguns deles e não outros. Esta vivência manifesta-se de uma forma pendular nos jogando inexoravelmente para frente e para trás, alternando momentos em que nos sentimos inferiorizados e pessimistas com outros em que, ao contrário, sentimos exaltação e otimismo.
Sou um exemplo deste mecanismo. Na quinzena passada a tristeza montou em minhas costas, talvez acompanhando esses dias cinzentos, com a luz do sol esmaecida, tímida e pouco calorosa. Experimentei o rancor, a preguiça, o pessimismo e a sensação de inferioridade. Sentimentos muito difíceis de aceitar e que minavam minha vontade de viver. Antítese de uma fase precedente onde me encontrava entusiasmado, cheio de perspectivas positivas quanto ao futuro, esperançoso de alcançar metas pessoais e públicas.
A aceitação, confesso, difícil, dessas oscilações, é muito importante e muito rara. Nas redes sociais quase nunca observamos postagens revelando momentos de derrota, quedas, fracassos e culpas. Ao contrário, tudo parece irradiar apenas luz: todos viajamos para lugares paradisíacos, comemos coisas incríveis em bons restaurantes ou estamos cercados de amigos sempre sorridentes. Ninguém quer se associar aos polos negativos dos opostos e, mesmo aqueles que aceitam carregar esta verdadeira cruz que é a oscilação dos humores, talvez não estejam preparados para avançar ao próximo nível deste jogo vital. Experimentar os opostos não mais “um depois do outro” e sim “lado a lado”.
Jung afirma: “O um após o outro é um prelúdio suportável para o conhecimento profundo do lado-a-lado, pois este é um problema incomparavelmente mais difícil. De novo a visão de que bem e mal são forças espirituais fora de nós, e de que o homem fica preso no conflito entre eles, é de longe mais suportável que a percepção de que os opostos são as precondições indispensáveis de toda vida psíquica.”
À medida que o ego amadurece torna-se capaz de assumir sua própria carga de mal que é uma atitude imprescindível se o indivíduo almeja atingir a plenitude da vida. Vejam bem, não se trata de abraçar o mal, tornando-se cruel, sádico ou desumano, mas de reconhecer que temos em nós essas inclinações mesmo optando por não as reproduzir concretamente.
Conciliar os opostos era considerada a “Grande Obra” para os velhos alquimistas, precursores dos químicos e dos psicólogos. As imagens encontradas em seus tratados, estranhas e exóticas, se repetem nos sonhos de homens modernos. O resultado de sua incansável procura era chamada, entre muitos outros nomes, de Pedra Filosofal, uma matéria incorruptível, capaz de se multiplicar, de tudo penetrar, transformando matéria ordinária em preciosa. Eles nos conduziram à verdade de que o trabalho com os opostos, feito de maneira conscienciosa, verdadeira e até religiosa, é capaz de produzir em nós essa Pedra que nada mais é que a consciência. Não entendida aqui como o contrário de inconsciência, mas sim como uma consciência transpessoal, planetária, universal. Afirmavam também que havia um paralelo entre sua Pedra e Jesus Cristo, que nos evangelhos é chamado de pedra angular por nós rejeitada. O Cristo crucificado entre os dois ladrões, o bom e o mau, seria um símbolo de toda a humanidade suspensa em sofrimento entre os opostos. Sofrimento aceito de plena vontade que desembocou na ressurreição de Jesus num corpo glorioso, demonstrando alegoricamente que o sofrimento consentido e sentido na vivência das polaridades leva, em última instância, ao nascimento do Cristo Ressuscitado em nós. Esta consciência cósmica que vem chegando para nos revelar a maravilha que é a unidade de todas as coisas, abrindo nossos corações para o desabrochar de todos os dons de toda nossa alma que irá bradar aos sussurros o verdadeiro e último propósito de nossa encarnação nesta Terra.
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Marcello Escorel é ator e diretor de teatro há mais de 40 anos. Paralelamente a sua carreira artística estuda de maneira autodidata, desde a adolescência, mitologia, história das religiões e a psicologia analítica de Carl Gustav Jung.