Peladeiros formam verdadeiras famílias dedicadas à prática do esporte mais popular do mundo
Maré de Notícias #131 – dezembro de 2021
Por Hélio Euclides e Jorge Melo
“Já atuei em outros campos, mas agora não quero sair daqui, pois os peladeiros são uma família, tudo gente de responsa. Nós não treinamos como os profissionais, trabalhamos a semana toda e ainda fazemos bonito.” Essa declaração de amor ao futebol é de Paulo César Silva, morador da Nova Holanda, que joga toda manhã de domingo no Campo da Toca, na Vila dos Pinheiros. Esse sentimento de pertencimento e amor pelo espaço de lazer é igual para inúmeros jogadores de favela e faz parte do cotidiano da Maré.
Esse carinho pelos campos de várzea vem, muitas vezes, da construção e restauração dos espaços, pois são os próprios jogadores que tapam buracos, plantam a grama e fazem o que for para manter o espaço. Outros cresceram junto com o campo, participando de escolinhas de projetos sociais. Antônio Carneiro, conhecido como Japão, tem 63 anos e não joga mais; porém, sempre está à beira do campo da Toca. “Tenho amor por esse espaço. Depois dos jogos, ficamos na ‘resenha’, falando dos passes e gols”, diz. Ele defende a preservação desses locais de lazer, pois muitos deixaram de existir, para virarem conjunto de casas.
Na Maré, três campos chamam atenção pela tradição e longevidade. Além do Campo da Toca, o Vila do João e o da Paty, na Nova Holanda, são considerados templos do futebol da Maré. “O campo é o lugar de alegria, onde encontramos a galera. Esse futebol aos domingos faz bem para a minha saúde. Se não fosse por isso, eu já teria morrido”, conta António Carlos Oliveira, conhecido como Da Barra, de 67 anos. Alguns têm um apelido que identifica seu campo de coração. É o caso de Valdo Gonçalves, conhecido como Macarrão da Toca, de 60 anos. “Destes, 35 primaveras são de futebol naquele campo. Não tem graça ficar em casa, aqui é uma família. No domingo eu tomo café com canela e venho para o campo”, explica.
Para o historiador Bernardo Duarte, o campo de futebol tem uma importância decisiva para milhares de amantes e praticantes do jogo. “Se o futebol profissional garante o espaço aos atletas dentro dos estádios e dos clubes, aos amadores esse terreno tem de ser conquistado no ambiente público, pois a sanha especulativa quer sempre se apropriar desses espaços”, afirma. Ele acredita que quanto mais lugares de jogo se oferece à favela, mais lazer e bem-estar são garantidos.
Um coração gramado
Na pelada dos veteranos da Toca, o organizador há 12 anos é Sebastião Rodrigues, conhecido como Boi. “Às vezes fico saturado de ser uma liderança do futebol, mas muita gente depende do meu trabalho. Quando não tem futebol, os mais de cem veteranos ficam de cara triste. Todos dependemos da bola no domingo; sem ela, não somos ninguém. Precisamos cuidar dos campos, como o da Toca, pois nem todas as favelas tem esse ‘Maracanã’ para jogar”, conta.
Hoje, o Campo da Vila do João virou um estacionamento e Boi acredita que isso aconteceu porque o espaço não foi administrado adequadamente. Mas para ele, a força da história permanece. “Guardo na memória momentos memoráveis, como os 11 campeonatos de veteranos que organizei, com encerramento com festas. O campo da Vila do João faz parte da história da favela; muitas gerações jogaram ali. Nele tive muitas alegrias com o meu time Raiz da Vila”, diz.
Paulo Gadelha, conhecido como Casão, de 67 anos, relembra uma destas histórias. “Já joguei no Campo da Arquitetura, que era localizado onde hoje é o estacionamento da Reitoria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Fui um dos fundadores do Campo da Vila do João, no lugar onde é a Escola Municipal Professor Josué de Castro. Sinto prazer em jogar na Maré, onde é o meu lugar”, relembra.
O Campo da Toca tem José Carlos Ferreira, conhecido como Zé Bala, como administrador do espaço. Com 38 anos de futebol no local, ele hoje fica de olho no campo: os jogadores não podem entrar descalços ou com chuteira de trava. “Dessa forma, ajudo a conservar. Se não fosse chato, o campo já tinha acabado. Quando o campo era careca eu pedia para os jovens em alguns momentos darem chance também para as crianças jogarem, pois o direito é de todos”, conta.
Apesar da preferência dada aos veteranos, o campo também é usado por projetos sociais que usam o futebol para trabalhar com as crianças. Gláucio Aleixo é coordenador do Projeto Rogi Mirim, que atua há 23 anos no Campo da Toca. “O campo é uma arma contra a ociosidade. Na pandemia, interrompemos o projeto por 30 dias. Percebemos que a criança não ia para escola e acabava na rua. Então retornamos com os cuidados necessários”, diz. Cerca de 250 crianças batem bola no campo diariamente — mesmo lugar onde jogaram convidados como Douglas Luiz (volante do clube inglês Aston Villa e da seleção brasileira), Romário (ex-Vasco, atualmente senador), Vágner Love (ex-Flamengo), Wellington Silva (ex-Fluminense), Charles (ex-Cruzeiro e Palmeiras), Felipe (ex-Vasco) e Diego (atualmente no Flamengo).
Aniversário com a família da bola
O campo localizado no coração da Nova Holanda já se chamou Oriente, 11 da Vila e Ouro Preto, mas foi rebatizado por ocupar o espaço onde foi construída a fábrica de macarrão Paty. Nele nasceram times como o Paz e Amor, Cascavel, Flexa, Cascudo, Cruzeirinho, Caneco e Santa Luzia. O campo também é um celeiro de craques como Dudu, do Boavista, Douglas Luiz e Leo Oliveira, ex-Flamengo.
Administrador há mais de dez anos do Campo da Paty, Gilvan Salas, conhecido como Giva, de 47 anos, tem no espaço um pedaço importante da sua vida: o lugar foi palco de memoráveis partidas, tanto jogadas na sua infância como na do seu filho, hoje. “O futebol é tudo, ainda faz relembrar dos velhos tempos. O Paty é um ponto de encontro para um bate-papo com os amigos. Tenho orgulho de tomar conta de um patrimônio da nossa comunidade que é tudo para mim”, conta.
Dá para dizer que Arides Menezes é mais popular do que nota de R$ 2 na Nova Holanda, graças à sua trajetória no Campo da Paty. O local foi escolhido para comemorar seu aniversário e também os 46 anos do seu time, o Cascudo. “Cheguei aqui em 1955 e já tinha o campo. Em meados de 1970, apareceu o dono do terreno que murou o campo. Ficamos mais de cinco anos sem futebol. Depois entramos com enxadas e fizemos a limpeza e tudo voltou ao normal”, diz. Ele lembra que a última grande obra foi a instalação de grama sintética, mas, como não ocorreu manutenção, o material se deteriorou.
Segundo o jornalista, escritor e pesquisador Aydano Motta, essa sensação de pertencimento tem a ver com o lugar de vivência das pessoas. “Um exemplo é o Douglas Luiz, que joga na Inglaterra, mas é cria da Nova Holanda. Sempre que dá entrevista fala do lugar onde mais gosta de jogar, que é a Maré. Isso tem a ver com o lugar que é aceito, onde é querido, as relações são sinceras e o amor é verdadeiro. Este sentimento de pertencimento é muito importante, por isso estes locais precisam ser valorizados”, explica.
Para ele, o ex-jogador Adriano Imperador, do Complexo do Alemão, renunciou ao futebol para ficar mais próximo do povo e do lugar dele: “É prova de que, diferentemente do que pensa a elite, lugares como a Maré, o Complexo do Alemão, a Rocinha, a Baixada Fluminense e São Gonçalo são lugares belos e apaixonantes; basta saber conhecer. Daí vem o reconhecimento de pessoas que podem jogar em campos riquíssimos, como na Europa, apenas por dinheiro, mas onde querem estar é na favela. Isso tem a ver com dignidade, legitimidade, sinceridade e amor encontrado no território.”