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O Cogumelo Mágico

Foto: Gustavo Almeida publicado em Comciência

“Pipoca aqui, ali, ‘desanoitece” a manhã, tudo mudou.” Gilberto Gil

Por Marcello Escorel (*)

Desde que recebi o convite para ser colunista do Maré de Notícias, recebi as opções de publicar semanalmente ou quinzenalmente. Escolhi imediatamente o prazo mais extenso por duas razões: a primeira é que há muito perdera o hábito de escrever e a segunda pela vastidão dos assuntos e o desafio de decidir os temas eleitos para este espaço.

Aos poucos venho desenvolvendo a seguinte metodologia: leio, leio muito e espero uma notícia atual que possibilite alguma junção com o material das leituras.

Recentemente a tragédia no Jacarezinho me mobilizou muito e queria escrever algo relacionado a brutal chacina ocorrida na minha cidade. Foram duas semanas em que me senti nadando em uma piscina de gel. Gostaria de oferecer um artigo que me permitisse dissertar, entre outras coisas, sobre a ineficaz, truculenta e equivocada política de combate às drogas. Lembrei-me de várias abordagens possíveis, como a história da Lei Seca nos Estados Unidos, um antigo Vietnã caseiro que gerou enorme ônus de vidas perdidas resultando em derrota e revogação da dita lei. Poderia também discorrer também sobre a hipocrisia atual de conivência com o álcool, o cigarro, o açúcar, a cafeína e os fármacos ansiolíticos e tranquilizantes. Mostrar a demonização da maconha promovida pela indústria do tabaco. Mas o que tudo isso teria a ver com o sagrado, os mitos ou a escola junguiana?

E lá me encontrava tentando achar uma boia para flutuar sobre o gel da piscina.

Achei que tinha encontrado a solução quando recordei que na minha estante havia um livro interessantíssimo de um etnobotânico de nome Terence McKenna chamado “O alimento dos deuses”, um estudo apaixonado sobre as plantas psicodélicas e sua relação com o desenvolvimento da humanidade. Me atraquei à obra com avidez, tomei notas, mas algo ainda me preocupava. Como apresentar as especulações de McKenna sem parecer um apologista das drogas e de sua liberação indiscriminada? Estava neste impasse quando novamente o universo na forma de sincronicidade (ainda vamos falar sobre ela no futuro) me fez encontrar uma matéria publicada em 25 de maio no G1 sobre as recentes pesquisas promissoras de uso de psicodélicos para tratamento de alcoolismo, experiências pós-traumáticas, depressão e outras disfunções psíquicas.

Eu achara o meu ponto de apoio.

A tese fundamental de McKenna nos faz recuar ao Paleolítico, a Idade da Pedra, quando nossos ancestrais desceram das árvores e começaram a ocupar as pradarias africanas entrando em contato com o gado e, principalmente, com o cogumelo que brotava do esterco das manadas: o “stropharia cubensis”. O princípio ativo alucinógeno em questão é a “psilocibina”, cuja ingestão estimula, entre outras coisas, a linguagem e a acuidade visual. Duas importantes aquisições tanto para os homens caçadores que se tornaram mais eficientes com o auxílio de um “binóculo químico”, tanto para as mulheres que desenvolveram maior habilidade  na comunicação e no compartilhamento das  informações sobre o alimento comestível. era comestível.tados –  eram comestíveis, onde encontrá-los e qual sua morfologia.

A inclusão do cogumelo mágico na dieta fez eclodir o que foi talvez a primeira manifestação religiosa da humanidade: o xamanismo, que agora vemos reviver em manifestações como o Santo Daime.

O consumo de psilocibina – substância encontrada no cogumelo – pode ter sido o fenômeno catalisador de nossa afirmação como seres humanos no mais amplo sentido. As culturas igualitárias da Grande Deusa Mãe, Gaia, a Terra, surgiram através de seu uso, fundando um culto de êxtase, comunhão e dança como num festival de rock. E só desapareceram com a invasão dos indo-europeus cuja ênfase repousava no uso de carros de guerra e no consumo de álcool, proveniente da fermentação do mel, para invadir e espoliar outros povos.

Vivendo nestes tempos de degradação da vida, da coisificação de tudo, da natureza e de nós mesmos, é importante refletir que talvez o Éden seja uma metáfora das savanas africanas onde os primeiros hominídeos estabeleceram uma relação simbiótica com o cogumelo mágico. Este intercâmbio continuou durante a história com outros alucinógenos religiosos como o Haoma do Zoroastrismo persa, o Soma dos Vedas hindus e o unguento das feiticeiras medievais, reforçando a ideia de que, como espécie, estivemos sempre numa relação simbiótica com as plantas psicodélicas.

Minha esperança é que as novas pesquisas e o conhecimento do passado posam nos iluminar para esclarecermos cada vez mais quais os verdadeiros interesses que estão em jogo quando declaramos guerra ao Mundo Vegetal e nos impeçam com as bençãos da Mãe de enveredar pelo caminho tosco do fundamentalismo destruidor de mentes e vidas.

Chacina nunca mais.


Marcello Escorel é ator e diretor de teatro há mais de 40 anos. Paralelamente a sua carreira artística estuda de maneira autodidata, desde a adolescência, mitologia, história das religiões e a psicologia analítica de Carl Gustav Jung

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