Espaço Normal propõe uma política de cuidado com as pessoas
Artigo: Vanda Canuto e Hélio Euclides*
Redução de Danos é uma estratégia de saúde pública que busca controlar possíveis consequências adversas ao consumo de psicoativos, lícitos ou ilícitos, sem, necessariamente, interromper esse uso, e buscando inclusão social e cidadania para usuários de drogas.
Essa informação da cartilha Redução de Danos Saúde e Cidadania do Ministério da Saúde mostra uma forma de tratamento e um olhar humanizado para esse público. Estratégia que tem origem na década de 1920, no Reino Unido, mas só chega ao Brasil no fim dos anos 1980.
O Programa Redução de Danos vê o uso de drogas como um caso de saúde pública. Esse serviço também visa a proteção de usuários. Dados epidemiológicos do Projeto Ajude Brasil da Universidade Federal de Minas Gerais, de 1998, sobre os atendidos pelo Programa Redução de Danos, mostra que 23% procuraram tratamentos para dependência química. Nos países que implantaram o programa, como na Austrália, a taxa de infecção pelo HIV entre usuários de drogas injetáveis se mantém abaixo de 5%.
Para falar do programa é preciso entender que ao falar de drogas é necessário mencionar não só as ilícitas, mas também a dependência das lícitas, que se enquadram no uso de álcool, nicotina, cafeína, anabolizantes e medicamentos sem prescrição médica.
Além disso, esse trabalho ainda precisa superar o preconceito da sociedade que ainda acredita que o programa incentiva o uso de drogas. Esses mesmos “defensores dos bons costumes” querem colocar usuários debaixo do tapete, ou seja, desaparecer com essas pessoas, com o uso da internação compulsória. Esses indivíduos esquecem da Constituição Brasileira que menciona que todos são iguais perante a lei.
Infelizmente ainda ocorre um tratamento pejorativo e preconceituoso que parte da sociedade, começando pela forma como se referem a quem está em situação de rua e é usuário de drogas: “cracudo”.
Redução de danos e autocuidado:
Para reverter isso, na Maré foi criado um local com um olhar humanizado, o Espaço Normal, um equipamento de referência sobre drogas e saúde mental. A Redes da Maré inaugurou esse espaço em maio de 2018, o primeiro equipamento de referência na articulação de uma ampla rede de cuidado no território, estimulando a criação de vínculos, diálogos, acolhimento e promoção do autocuidado.
O principal objetivo do local é pautar uma agenda positiva sobre práticas de redução de danos. Seguindo essa lógica, a abordagem busca minimizar os prejuizos causados pelo uso problemático de drogas, ao invés de promover a abstinência completa. O Espaço Normal trabalha com esse viés aplicando esta prática de diversas formas, com o objetivo de promover um ambiente mais seguro e acolhedor para todas as pessoas que o frequentam. O espaço de “convivência” oferece de forma particular uma série de outras noções que no imaginário e na experiência do profissional estão ligadas ao ato ou efeito de conviver: criação de vínculos, redes de apoio, criação de sentido, inclusão, criação de laços sociais, relações interpessoais, produção de subjetividade, entre outras formas de convívio.
Neste local acontece sociabilidade, produção cultural e intervenção na cidade. A convivência por meio da construção de espaços de convívio e sustentação das diferenças na favela facilita a construção de laços sociais e a inclusão das pessoas com transtornos mentais. Essa forma de tratamento tem relação intersetorial e a produção de cuidado junto às redes de saúde envolve a articulação de diferentes setores e áreas, como a saúde, a assistência social, a educação, a cultura, entre outras, para promover uma abordagem mais integrada da saúde e do bem-estar das pessoas.
Esse convívio no Espaço Normal pode se constituir como mais um ponto que se destaca através da vivência territorial a partir das quais a convivência se estabiliza para um universo de novas conexões e de cuidado com ênfase na Redução de Danos. No espaço de convivência, não existe uma atividade direcionada a cada frequentador que seja específica, pelo contrário, experimenta-se, em certo sentido, uma liberdade para fazer o que se tem vontade, como forma de produção de autonomia em atividades propostas por qualquer pessoa e negociadas com os normais e equipe, sendo assim a coletividade direciona as vivência diária.
A redução de danos é uma estratégia que tem o comum acordo e a concessão dos conviventes para a realização das atividades voltadas para o cuidado da saúde. As atividades são aquelas que visam minimizar os riscos e danos associados ao uso de substâncias, essas atividades geralmente são intervenções que trabalham diretamente a vinculação do sujeito deixando o usuário livre para conhecer os malefícios que as drogas podem produzir em suas vidas..
Entende-se que os centros de convivência não são os que direcionam qualquer tipo de ação, o desejo do indivíduo. Acredita-se que é possível fortalecer e direcionar as pessoas para o seu caminho escolhido e fazer valer os seus desejos enquanto pessoas de direitos. Nos equipamentos, a todo momento ouve-se falar sobre direitos e autonomia, por isso não seria nada profissional questionar de forma negativa o cuidado escolhido por determinadas pessoas.
O Espaço Normal surgiu para receber pessoas com o que chamamos de baixa exigência, ou seja, poucos quesitos, para que não haja nenhum empecilho na chegada de qualquer pessoa ou de quem procura por atendimento. Há um trabalho para que os frequentadores que naquele momento estejam desorganizados consigam chegar e ficar. Os usuários que fazem uso problemático, abusivo, precisam se sentir acolhidos e que ali é o seu lugar. Para isso, temos redutores de danos disponíveis para dialogar sobre suas questões, com uma escuta ativa para entender melhor as suas histórias de cada vida, história de família, esposa, mãe e filhos. Há uma tentativa de que essas pessoas não fiquem só na lembrança, mas que tenhamos direcionamentos juntos com os nossos parceiros, para que eles tenham o desenrolar de cada história pessoal, para que eles tenham o próprio sonho fortalecido por uma equipe empenhada em entender e valorizar o cuidado desse ser em liberdade.
Durante os atendimentos aos Normais (pessoas que frequentam o espaço) buscamos informações que nos levem a um processo de vínculos, só conhecendo e nos aproximando para iniciar o cuidado, seja na saúde ou nas organizações das documentações. A Equipe tem uma relação de parceria com os equipamentos públicos para justamente facilitar o acesso a direitos básicos da população atendida. No último trimestre de 2023, compareceram ao Espaço Normal 977 pessoas, de julho a setembro, em busca de alimentação, de banho e de um local seguro para descansar. Com o olhar na singularidade de cada sujeito, é possível promover o acesso a direitos básicos das pessoas que convivem em situação de rua.
Em entrevista a Secretaria da Saúde do Estado do Ceará, a doutora em Psiquiatria pela Universitat Autónoma de Barcelona e mestra em Dependência Química pela Universitat de Barcelona destacou a importância de colocar o paciente no centro do cuidado. Ela afirma que a redução de danos pressupõe um tratamento pautado no respeito ao cidadão, com a necessidade de uma escuta complexa, adequada à situação de cada um, que acolha a pessoa e a família, evitando julgamentos morais ou de valores. Ressalta ainda, que o trabalho em equipe é fundamental. Ela ainda salientou que o objetivo é promover a autonomia do cidadão e o engajamento dele no seu tratamento.
Para que a estratégia de redução de dados seja ampliada, espera-se que sejam criados mais equipamentos como o Espaço Normal pelo país e que a saúde pública tenha investimento para uma formação de uma rede de tratamento com um olhar para o cidadão como ser pensante. Além disso, é primordial que a sociedade possa ter um posicionamento de aceitação do conjunto de ações, com respeito ao cidadão tendo como foco a prevenção de danos. Apenas dessa forma será possível pensar nas drogas como algo vinculado à saúde pública e com uma política que trabalhe a inclusão de todos os cidadãos brasileiros.
*Vanda Canuto é coordenadora do Espaço Normal e Hélio Euclides é cofundador e jornalista do Maré de Notícias.