Resistência: caminhos da arte periférica a partir da Maré

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Artistas de diferentes partes da Maré refletem sobre a importância da arte para a expressão da subjetividade dos jovens, assim como para denunciar os efeitos nocivos da desigualdade social sem a lente dos estereótipos

Por Tamyres Matos, em 30/09/2021 às 10h20. Editado por Edu Carvalho

Jefferson Melo é morador da Baixa do Sapateiro. Matheus Frazão mora no Conjunto Esperança. Ambos são mareenses de 25 anos que têm muito a dizer sobre o contexto da arte periférica. As manifestações artísticas ganharam centralidade na vida dos dois ainda na infância/adolescência. Jefferson atua no projeto “Entre Lugares”, do Museu da Maré, há seis anos e criou, durante a vida pandêmica, o movimento virtual Narrativas Periféricas. Matheus começou sua jornada artística na Usina da Cidadania, em Manguinhos, e recentemente integrou a mostra competitiva do Festival de Teatro Universitário (FESTU) com o monólogo Cavalo Alado, que idealizou junto a Diogo Nunes, amigo do Complexo do Alemão, e denuncia os abusos dos agentes públicos durante as operações policiais.

“Eu não quero falar sobre Shakespeare, quero contar o que vivo, o que domino, o que sinto. Arte periférica é falar sobre nós. O objetivo é falar das memórias, dos atravessamentos que acontecem nesse espaço. Seja pela ausência do estado, seja pelas memórias afetivas construídas com a nossa vivência. Aqui temos uma cultura própria, um jeito de falar próprio. É importante contar histórias sobre o nosso local e temos propriedade para fazer isso de forma mais profunda que os estereótipos, ir além das lentes pelas quais costumamos ser vistos por quem é de fora”, analisa Matheus.

Os jovens, que são amigos e têm um trabalho em comum no Museu da Maré, têm um discurso alinhado quando discutem o poder da arte e a importância desta para valorizar a narrativa da periferia. Jefferson acredita que ser artista na Maré é sobre “resistir e insistir”. “A arte ainda é uma bolha elitista e o que se produz fora da favela nem sempre interage com o que se produz dentro. Não existem muitos recursos para a arte e cultura de maneira geral, é um campo abandonado pelo governo. Então, na favela, onde esses esquecimentos são duplicados, há ainda menos investimentos. Então viver na arte é lutar pela sua história, pela sua memória, pelo território, pois somos excluídos do pertencimento na cidade. Ser artista favelado é amor, é vocação, é identidade”, defende.

Matheus Frazão no espetáculo Cavalo Alado que denuncia os abusos dos agentes públicos durante as operações policiais.

Arte e saúde mental

Ao pensar a expressão artística durante o período da pandemia, Matheus e Jefferson reforçam que, apesar dos evidentes abalos emocionais, foi essencial – e requisito de sobrevivência – não abafar essa área da subjetividade. Entre os dias 23 e 28 de agosto, o território mareense viveu a 1ª Semana de Saúde Mental (Rema Maré). Uma série de atividades culturais realizadas em desdobramento à pesquisa Construindo Pontes, que analisou os impactos da violência urbana na saúde mental dos moradores das 16 favelas. O Rema Maré é a arte periférica a serviço do debate sobre qualidade de vida e estratégias para minimizar o sofrimento mental da população.

“O papel da arte dentro da Maré é o papel da arte em todo canto. A gente busca ligar, conectar as pessoas. Se eu fizer um desenho e não mostrar pra ninguém, essa é uma forma de fazer conexão comigo mesmo. Quando eu mostro para alguém, é uma conexão com outra pessoa. Se eu colocar na parede e muita gente puder ver, essas pessoas estão conectadas, não somente comigo, mas também entre elas. Arte é um estímulo de conexões”, define Paul Heritage, diretor artístico da People’s Palace Projects, instituição britânica parceira da Redes da Maré no estudo Construindo Pontes.

Matheus e Jefferson concordam com a visão de Paul. Para o jovem do Conjunto Esperança, viver a arte é uma forma de desenvolver o autoconhecimento. Ele acredita que “arte é qualidade de vida, tanto para quem assiste, quanto para quem faz”, mas que as exigências de produtividade durante o período restrito às telas da pandemia também se tornaram um peso para muita gente. 

“Eu tive muita dificuldade e vi que muitos artistas amigos meus se sentiram obrigados a produzir conteúdo para plataformas digitais. O que parecia inicialmente ser um refúgio acabou por se tornar um bicho de sete cabeças. Especialmente no ano passado, houve uma cobrança muito intensa pela produção de conteúdo e isso se tornou nocivo. Eu mesmo resolvi me afastar por um tempo. Mas, com o tempo, as coisas foram tomando um outro rumo, a pressão vem diminuindo”, diz Matheus.

Jefferson acredita que ainda imperam certas linhas divisórias nem tão imaginárias – como as barreiras criadas por grupos criminosos – entre as 16 comunidades da Maré que, às vezes, impedem que as conexões se desenvolvam plenamente. Mas ele torce para que os artistas, independentemente da área de atuação, estejam cada vez mais próximos. “A arte é uma poderosa ferramenta de aquilombamento (espaços de organização para agir sobre a realidade). Às vezes, ficamos retidos nas comunidades que moramos e não há tantas trocas, mas a arte não separa, ela agrega, colabora, ouve. É importante que os artistas da Maré estejam cada vez mais juntos”, torce.

Jefferson atua no projeto “Entre Lugares”, do Museu da Maré, há seis anos e criou, durante a vida pandêmica, o movimento virtual Narrativas Periféricas.

Pertencimento e identidade

Nos relatos de trajetória, mais uma vez os discursos de Jefferson e Matheus se encontram. As palavras “pertencimento” e “identidade” são proferidas com naturalidade para explicar a importância da arte em suas vidas e na sua relação com o território. “No ‘Entre Lugares’ (projeto do Museu da Maré) foi onde eu me desenvolvi. Quando comecei a ter uma relação mais íntima com a arte porque ali a gente tava falando de pertencimento, sabe? A gente estava falando sobre a construção da Maré, no que eu posso chamar de um teatro de memórias. Discutimos quem foram as pessoas protagonistas do povo na construção da Maré, os atores sociais que estiveram presentes”, relembra Matheus.

Jefferson acredita que arte periférica é sobre ter uma forma de expressar suas experiências.  “Transparecer costumes, cultura, memória, corpo… A vivência da favela não é o padrão, o ‘comum’ é fora da favela, a segregação é uma realidade. Temos formas diferentes de falar, de conviver, de se comunicar. É um estilo próprio e temos legitimidade para deixar claro isso para o mundo através do nosso trabalho”, considera.

Parceiro da Maré de longa data, Paul Heritage oferece uma visão de fora em comparação ao discurso dos jovens artistas. O professor de drama e performance da Universidade Queen Mary, em Londres, Reino Unido, acredita que a arte é a prova de que “a vida é uma ação coletiva”. “A arte faz o mundo, faz com que sejamos testemunhas de nossas próprias vidas e dos outros membros da nossa comunidade. Pra mim, a Maré é o mundo. É um mundo tão rico que eu tenho sempre vontade de voltar para fazer parcerias. O que aprendi com a Maré foi a profundidade da relação entre arte e território. Toda a arte que produzimos, todo o conhecimento que a gente faz vem da nossa relação com o território. Na Maré tem uma concentração da vida que é muito enriquecedora. Isso é arte na periferia. E a forma como eu sinto é nada periférica porque às vezes eu sinto que a Maré é o centro do meu mundo”, se declara.

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