Criadora da BR Brasil Show, uma rádio on-line de samba que já conta com mais 29 milhões de acessos, a jornalista Cláudia Alexandre fala ao Maré de Notícias Online sobre sua vida, sucesso e relação com o samba e a cultura afro-brasileira
Thaynara Santos
Lançada em 2018, a rádio on-line BR Brasil Show tem uma programação voltada exclusivamente para samba e cultura afro-brasileira e já alcançou milhões de pessoas. A informação é da plataforma Similar Web, responsável pela análise de tráfego de sites. Nesta entrevista, a jornalista paulistana Cláudia Alexandre, criadora da rádio, fala um pouco sobre sua trajetória acadêmica e no mundo do samba, como mulher negra e periférica. Claudia é doutoranda, mestre e pós-graduada em Ciência da Religião, e estuda a relação do samba e as religiosidades afro-brasileiras.
MN: Quando escolheu trabalhar como radialista?
Claudia: Escolhi o jornalismo desde cedo e sou extremamente apaixonada por minha profissão. Me formei aos 21 anos. Meu primeiro emprego foi exatamente meses após eu ter me formado. Fui indicada para trabalhar num programa de rádio, Rádio Gazeta. E, quando cheguei lá, era um programa de samba. Rede Nacional do Samba, com Evaristo de Carvalho. Um homem negro, que fez história no rádio, principalmente por colocar no ar, por 45 anos, o mesmo programa. Quando eu entrei pela primeira vez num estúdio de rádio, já para ser a repórter de um programa de samba, não imaginei que estava entrando em um caminho para encontrar parte da minha história. Enfim, para uma recém-formada, negra, jornalista, posso dizer que uma mão preta, de um homem negro, me colocou nessa trilha profissional, no universo machista do samba e das escolas de samba, onde me especializei, e estou trabalhando até hoje, na perspectiva da complexidade e do fato social que o samba representa.
MN: Qual sua ligação com o samba?
Claudia: Pra quem não sabe, há uma relação bem importante do negro com o universo do rádio, não só como veículo de comunicação, mas de mercado profissional. Uma bela e única pesquisa sobre o negro e o rádio, feita pelo professor João Baptista Borges Pereira (Cor, Profissão e Mobilidade – o Negro e o Rádio de São Paulo) mostra que entre 1942 e 1964, o rádio e o futebol eram espaços, que, à parte do ambiente doméstico, acolhia o profissional negro. Muito mais homens que mulheres. A maioria como cantores e operadores técnicos. A presença da mulher negra era observada na plateia dos programas de auditório das rádios-novelas e programas ao vivo. Elas eram maioria entre as empregadas domésticas, babás e donas de casa, que, animadas, gritavam e cantavam. Imaginem que é daquele tempo a expressão “macacas de auditório”, um estereótipo que marca racialmente e pejorativamente aquelas mulheres, a maioria negra. Macacas de auditório! Hoje desenvolvo pesquisas que avançam com o tema e busco revisitar todos os registros e a produção sobre a presença de valores negros africanos, em especial, das expressões culturais e da religiosidade, que romperam um sistema de desigualdades, opressão, perseguição, o racismo para se transformar a partir de valores civilizatórios negro-africanos. Essa é uma das razões para que eu voltasse em 2012 para a Academia, depois de quase 20 anos, militando no samba, e encontrasse na Ciência da Religião uma forma de dizer que o samba é muito mais. Não é só o ritmo, a música! Revisitando a história do samba, eu encontro a história de construção de identidade, de ressignificações, de valorização e manutenção de valores ancestrais de matriz africana.
MN: Quando começou a trabalhar com rádio?
Claudia: Exatamente em 1988, ano do Centenário da Abolição, o que foi muito simbólico. Fui contratada para ser repórter do programa Rede Nacional do Samba, do Evaristo de Carvalho. Além de ter sido meu mestre. Ele me ensinou a ser uma repórter de rádio, escrever para rádio e transformar o samba em notícia. Valorizar a história do povo negro jornalisticamente, coisa que até hoje nos ressentimos quando falamos de inserção das pautas negras pela mídia. Naquele ano, o Evaristo, que era também colunista do jornal A Gazeta Esportiva, me indicou para ser repórter especial do Caderno dos 100 Anos. Foi o melhor começo que uma jornalista recém-formada e negra poderia ter. Entrevistei as pessoas mais importantes da época sobre o tema racismo, cultura negra, ações afirmativas. Falei com políticos e personalidade, e muita gente do samba. Da periferia ao Centro. Foi minha base profissional. Fui efetivada também na redação do jornal. Gostaram tanto do meu trabalho, que consegui o meu primeiro registro em carteira. Passei a entrevistar sambistas e artistas para a editoria de Variedades, mas continuei na equipe do Evaristo. Aí vieram os convites: passei pelo jornalismo da Rádio América, Tropical FM, Imprensa FM, 105 FM e, até que em 1992, fui contratada pela Transcontinental FM para integrar a equipe da emissora, que tinha decidido mudar a programação e tocar exclusivamente, [durante as] 24 horas, samba na programação. Foram cinco anos em primeiro lugar! A maior audiência do rádio de São Paulo. Me tornei ainda mais conhecida, tendo já o público e o reconhecimento conquistado, desde o início tendo atuado ao lado do Evaristo de Carvalho. Me desliguei da rádio depois de um episódio de racismo de um diretor de promoções, que assumiu o departamento e iniciou uma desqualificação do meu trabalho e de um outro locutor negro. Preferi me desligar. Se fosse hoje, teria enquadrado ele na lei de racismo e assédio moral. Passei por outros veículos de comunicação como a TV da Gente (que o Netinho de Paula dirigiu em 2005); SBT (como repórter do Jornal da Massa) e hoje tenho uma plataforma digital, chamada BR Brazil Show, que é um hub de comunicação, que desenvolve a rádio online BRZ, a digital do samba.
MN: E sua Rádio online BR Brasil Show? Quando decidiu falar sobre samba e cultura afro-brasileira? Qual foi sua reação quando sua produção atingiu milhões de pessoas?
Claudia: Eu estou muito feliz! É um universo muito complexo, saio de uma atuação de 30 anos no universo analógico para o digital, as mudanças são a todo momento. Tive que profissionalizar toda a minha equipe e intensificar o estudo, voltado para estratégias nesse novo universo. Tenho o desafio de lidar com um produto de tantas tradições e fundamentos e inseri-lo num universo. Mas está sendo desafiador. É resistência, militância em tempo real. As performances da plataforma também são medidas de várias maneiras e, depois de um ano de operação, tivemos esta grata notícia: de que hoje já estamos próximos de 30 milhões de acesso no nosso site www.brbrazilshow.com.br . O que tem facilitado é essa brasilidade que vendemos para o mundo. Esses acessos vão de encontro ao “z”, que se refere ao Brasil sendo ouvido lá fora e ao nosso slogan que é “a digital do samba”, uma inspiração para dizer que temos um DNA da ancestralidade que o samba representa, como a digital das nossas mãos e pés; e também ao universo digital que ocupamos. Hoje quem navega no site ou ouve a rádio pelo aplicativo e pelas mídias sociais, com certeza já está vivendo o futuro, com a nova forma de vivenciar o samba.
Maré de Notícias: fale um pouco sobre sua história de vida e formação?
Cláudia: Sou paulistana, nascida em um bairro periférico, fim de linha, do Distrito de Butantã, divisa com Taboão da Serra, região sudoeste da Capital. Sou Filha de um militar, de uma família de dois filhos, meu irmão mais velho nasceu exatamente 11 meses antes de mim. Sou mãe da Rubiah, hoje ela tem 21 anos, e é formada em Gastronomia. Essa configuração de família negra na década de 60 fez toda a diferença na minha construção como pessoa. Se por um lado foi muito seguro, para uma base sem traumas domésticos, também foi um problema pra mim. Sou eu mais uma mulher negra, que se construiu numa solidão cruel, desde fora, mas de muitas referências negras desde dentro. Uma casa própria, bem-estruturada, não houve nenhuma limitação financeira, emocional, pelo contrário. Na minha casa eu tive uma mãe maravilhosa (que nos deixou aos 45 anos de idade, após um infarto fulminante!), que nos deixou um legado de coragem, inteligência e espiritualidade. Meu pai, um provedor, dentro do seu tempo, junto com minha mãe, me transferindo todo um gosto pelo samba e pelo axé, já que ele é um iniciado no candomblé. Eu nasci e cresci com essas referências. Fui batizada na Umbanda aos 16 anos e mais tarde, na nação do meu pai biológico, como herdeira da ancestralidade, com a missão de continuar o que ele iniciou. Sou uma filha de Oxum. Essas referências, essa ligação com a ancestralidade, dentro de casa era minha janela para olhar um mundo que eu não encontrava na escola, que era meu caminho para o mundo externo. Eu acredito que a educação, assim como os meios de comunicação, colaboram profundamente para manter o olhar de inferioridade em direção ao povo negro e, em especial para a mulher negra. Sambas, sambas-enredos e orixás, formaram minha identidade com a negritude.