O início na carreira de jogador vira dilema na vida das crianças
Hélio Euclides
Embaixadas e uns dribles até chegar ao gol. Esse é o desejo de meninos que almejam jogar em clubes de futebol. Primeiro é preciso vencer uma peneira de altíssimo nível. Não adianta se iludir no País do Futebol: mesmo se o garoto for bom com a bola nos pés, não é nada fácil entrar em um time. As dificuldades não param por aí. Os alojamentos, que deveriam ser a segunda casa das crianças, viraram um depósito de gente. Em fevereiro, um incêndio colocou um prematuro ponto final em dez promissoras carreiras no futebol – e o que é mais importante: em vidas – e deixou três feridos. O acidente ocorreu no Centro de Treinamento (CT) do Flamengo, em Vargem Grande. Outra problemática são os estudos, que ficam em segundo plano na vida dos jogadores.
Passados cinco meses da tragédia no Flamengo, a Polícia Civil indiciou oito pessoas, acusadas de homicídio com dolo eventual, por terem assumido o risco de deixar os atletas expostos ao perigo. O inquérito concluiu que o alojamento provisório não tinha condições de servir como dormitório para os atletas de base, pois havia diversas irregularidades estruturais. Além disso, a ausência de monitores no interior do contêiner, a falta de reparos nos aparelhos de ar-condicionado e o descumprimento da Ordem de Interdição imposta pela Prefeitura do Rio foram outros pontos que pesaram na decisão. O pernoite só voltou a ser permitido recentemente, quando o Clube obteve o alvará definitivo para o funcionamento do CT.
Edson Izidoro, da Associação Esportiva Beneficente Amigos da Maré, há 20 anos se dedica a ser treinador no território. Ele vê muita diferença entre o tratamento das escolinhas e dos clubes. “O que aconteceu no Ninho do Urubu me emociona até hoje, pois o sonho deles acabou ali. Acredito que os clubes precisam investir mais. Falta profissional para acompanhar de perto os meninos, se preocupar com a comida e dar assistência. Meu trabalho é interligado com a escola, pois acompanho as notas e converso como os professores deles. No clube, precisa estar estudando, mas não tem a preocupação com notas; só olham o boletim no final do ano”, questiona.
No campo do Rubens Vaz, Izidoro acompanha 58 crianças, entre 5 e 15 anos. “Nosso trabalho vai além da parte física, tática e coletiva; orientamos os nossos atletas sobre a realidade da vida”, afirma. Ele revela que tudo é possível graças aos amigos, aos comerciantes e à Associação de Moradores do Rubens Vaz, já que não recebe ajuda dos governantes. Cleiton dos Santos, de 27 anos, deu seu pontapé inicial na escolinha e, hoje, é preparador de goleiros da associação e no Clube Real Maré. “O projeto forma não só jogador, mas pessoas do bem”, afirma Cleiton, que segue este ano para a Itália, para um intercâmbio.
Vitório Leandro, de 15 anos, é um dos alunos da escolinha, e diz que sempre tem incentivo ao estudo. O que marcou a sua vida foi ter feito avaliação com os meninos que morreram no Ninho do Urubu. “Conhecia todos. Em 2018, fiquei cinco dias no Flamengo fazendo testes, e um dia dormi no alojamento. Foi uma tragédia, de um alojamento que era considerado, por nós, como bom”, comenta.
Klaus Grunwald é professor de música, morador da Baixa do Sapateiro, e todo ano visita seus familiares que moram na Alemanha. Ele acha que os clubes brasileiros precisam seguir trajetórias europeias bem-sucedidas. “O que vejo é que eles investem desde a categoria de base até a seleção. Na Alemanha, em qualquer área, há uma preocupação com a criança. Aqui, no Brasil, é deixa a vida me levar”, diz.
É preciso pagar para virar jogador de futebol
O Maré de Notícias, Edição 88, de maio de 2018, trouxe o comentário de Nivaldo João da Silva, o Godoy, sobre a necessidade de ter dinheiro no início da carreira, para transporte e alimentação. Isso é confirmado por Flávio Alves, professor de Educação Física e treinador da escolinha Renovação Associação de Futebol, onde convivem 30 alunos de 5 a 17 anos, no campo da Paty, na Nova Holanda. “Essa é a dura realidade do futebol brasileiro. Um clube pequeno cobra taxa de arbitragem das crianças e, muitas vezes, o atleta nem é escalado. A família precisa investir, em média, 400 reais mensais. Para o pobre, ser jogador virou um sonho fora da realidade”, revela.
“Às vezes me sinto iludindo a criança, pois encaminho para o clube, mas sem o apoio financeiro, ela não continua”, conta. Para Flávio, é necessário cuidar da mente. “É preciso trabalhar a cabeça da criança, pois ela pode chegar a ganhar, a vida toda, um salário mínimo. Se um homem pode chegar a receber apenas isso, imagina a mulher, num País onde elas ainda ganham menos”, avalia. Quando se fala em futebol feminino, vale lembrar que, apesar da falta de investimentos, a Seleção Brasileira é tricampeã nos Jogos Pan-Americanos. O time ainda conta com a jogadora Marta, pessoa com o maior número de gols em Copas do Mundo (17 gols até o fechamento dessa Edição).
Estudo e futebol em lados opostos
Leo Oliveira, de 36 anos, teve sua carreira no auge em 2006, quando jogou uma temporada pelo Flamengo. Foram 16 jogos pelo Rubro-Negro. Hoje, joga pelo Itaboraí Profute, time da série B2 do Campeonato Carioca. Em sua trajetória, Leo só teve a chance de estudar até a 8ª série, pois viajava muito, com mudanças de clubes de outros estados. “O estudo é muito importante para a trajetória de um atleta. Na prática, ele usa esse ensinamento ao conceder uma entrevista ou quando joga fora do País e precisa apender outros idiomas. Mas, principalmente na questão da Matemática, para não ser enrolado por empresários que se acham espertos”, alerta o morador da Nova Holanda.
“Na base, há um incentivo aos estudos. O alojamento, quando tem uma estrutura boa, é muito importante para o desenvolvimento. Nem todos os clubes têm um alojamento digno para o futebol brasileiro; não há estrutura para abrigar atletas”, confessa Leo. Flávio concorda que alojamento bom ajuda no desenvolvimento do menino. “Cheguei a jogar na Portuguesa, Bonsucesso, Bangu e São Cristóvão e, muitas vezes, almoçava e jantava cachorro-quente com suco. Alojamento de clube pequeno é pior do que qualquer quarto da favela e, muitas vezes, nem tem ventilador. A base do Flamengo não precisava ter passado por isso, não houve investimento”, afirma.
Mauricio Murad, sociólogo, defende que bola e estudos precisam caminhar juntos. “Lamentavelmente não há essa preocupação, apesar de a lei exigir que essa orientação seja dada e seja uma das perspectivas das divisões de base dos clubes. De um modo geral, os dirigentes econômicos e políticos de nosso País não estão nem aí para a educação. E os do futebol não fogem a essa regra”, denuncia. Para ele, a escola é prioridade na vida do atleta. “No Rio de Janeiro, o único clube que tem uma escola dentro de suas dependências, como parte de sua estrutura de funcionamento, é o Vasco. Isso é muito grave, porque todos nós sabemos que sem educação não há solução. Educação tem de ser prioridade de Estado e não somente de governo”, sugere Murad.INFOGRÁFICO| ou OUTRA ARTE
Veja como estão os alojamentos dos grandes clubes da cidade:
Botafogo – utiliza o centro de treinamento profissional de General Severiano, em Botafogo, alojamento de pequeno porte com capacidade para até 16 atletas. Os jovens permanecem sob a supervisão de inspetores e são acompanhados de perto por uma assistente social.
Fluminense – atualmente são 45 meninos alojados, mas a média por ano é de 70 meninos. O Clube conseguiu o laudo da vigilância sanitária e alvará provisório de funcionamento para o CT de Xerém.
Vasco – fica debaixo das arquibancadas de São Januário, recebe de 40 a 45 jovens. São quatro monitores que se revezam em esquema de plantão. À disposição dos meninos, ficam três assistentes sociais e três psicólogos, um para cada categoria: sub-15, sub-17 e sub-20.
Flamengo – antes da tragédia, o alojamento era para cerca de 60 jovens, entre 14 a 17 anos. Com módulos habitáveis feitos de contêineres dentro do CT.
*fonte: site Globo Esporte