Cada um de nós carrega lembranças da infância. As boas, as ruins, todas, aprendizados para a vida. Eu me lembro da minha avó materna, a Dona Celina, me enchendo de talco, passando excessivamente um pente no meu cabelo e praticamente me amarrando no sofá da sala para que não amarrotasse o uniforme até a hora de ir para a escola.
Naquela época, o Brasil vivia o fim da ditadura militar. Eram os anos 1980, e eu, um menino negro, morador de uma vila operária do subúrbio do Rio, tinha, além das horas na escola, as brincadeiras na rua e o tempo de assistir TV. Este aparelho exercia uma influência gigantesca na vida das pessoas, e lá, meninos e homens negros não existiam. Quando eles apareciam eram tratados como objetos, em papéis subalternos, sujos, grotescos, violentos, primitivos e perigosos. Com esta referência, os apelidos e brincadeiras racistas – hoje, criminosas – eram constantes, uma perseguição mesmo.
Com a chegada da adolescência, a estratégia encontrada foi criar técnicas de “auto branqueamento” para ser aceito nos grupos porque, nessa fase da vida, a solidão é muito grande. A decisão, portanto, foi modernizar aquela antiga arrumação com talco da minha “velha”: cabelo sempre raspado, roupa de cores neutras com etiquetas aparentes e muito bem passadas, perfume de alguma marca gringa conhecida e tênis da moda. Deu certo, até ouvia que era “preto de alma branca” e não ligava para isso. Se tornar alguém que não era foi a estratégia para ter dias de paz e ser finalmente “aceito”.
“Naquele momento, os efeitos do racismo sinalizaram o sentimento de autopunição, cobrança, ansiedade e frustração, pois a superação para um homem negro é constante, diária.”
Carlos André – Cazé – Bacharel em Direito
A entrada sem espanto em determinados grupos era uma realidade, porém, tudo isso tinha um preço, um custo. E caro. O trabalho como office boy rendia um pequeno salário que não dava para comprar as peças da moda e também ajudar nas contas da casa.
Quando já não tinha mais como bancar as roupas da moda e percebendo que meus amigos brancos caminhavam conquistando mais coisas e ascendendo socialmente, comecei a entender o recado de que eu não fazia parte daquele mundo, por mais que eu me endividasse para manter a condição e imagem que havia criado. Naquele momento, os efeitos do racismo sinalizaram o sentimento de autopunição, cobrança, ansiedade e frustração, pois a superação para um homem negro é constante, diária. Você tem que ser o melhor em tudo, pedir desculpas e “com licença” até para o vento, tem de estar sempre de bom humor, ser pró-ativo, simpático, carregar peso com alegria, não reclamar de nada e estar sempre cheiroso e arrumado. Ou seja, tem sempre que aceitar tudo passivamente e, se não for assim, são xingamentos, olhares desconfiados e até a violência verbal e física.
Pensadores e intelectuais brancos relativizam nossa história com as teses mais absurdas. Por esse motivo, conhecer de maneira crítica determinadas questões é importante para mudar o curso da caminhada. E, no novo curso da caminhada, sempre haverá lugar para a Preta Velha que me arrumava para a escola, sabendo o mundo que tinha de enfrentar já com tão pouca idade. Hoje, com muita sinceridade e carinho com as sombras do passado, não faço mais uso do talco e não me escondo nas etiquetas da moda para ser aceito, prefiro refletir as palavras da professora Lélia Gonzales em que dizia que “Nós negros temos nome e sobrenome, senão os brancos vão nos apelidar da forma que eles querem”.
Esse nome, sobrenome, a história, cultura, a ancestralidade, nossa música, nosso sagrado, nossos intelectuais, nossos pretos e pretas velhas são pilares importantes da construção de uma nação que tenta constantemente apagar com violência, mentira ou nas sutilezas mais perversas. Mas são corpos negros e livres que hoje limpam o talco branco do pescoço, levantam a cabeça com orgulho e redefinem suas trajetórias.