Kaê Guajajara, multiartista indígena, fala sobre a representatividade indígena e a música como ferramenta de combate ao preconceito
Daniele Moura
Em torno da Baía de Guanabara, há trezentos anos, estima-se que havia 81 aldeamentos Tupinambás, onde hoje está a Maré. Pelo Censo Maré, realizado em 2013, pela Redes da Maré e Observatório de Favelas, são mais de 800 moradores indígenas entre as 16 favelas. A maioria, mais de 200, mora no Parque Maré.
A cantora, arte educadora, atriz e rapper indígena Kaê Guajajara chegou na Maré com 7 anos. Veio com sua família de Mirinzal, no Maranhão fugindo da escravidão que vivia. “Minha mãe tinha 14 e 15 anos quando saiu de Mirinzal. Morávamos em um lugar onde as pessoas viviam da pesca em casas de palha, mas a terra não era demarcada. A gente vivia uma escravidão, eles chamavam de trabalho mas depois que fiquei mais consciente já aqui, olhei para a situação e percebi que minha família era escravizada, trabalhava e recebia farinha como salário. A vida é uma caixinha de surpresas, saí fugindo da violência de uma terra não demarcada e olha onde eu vim parar na Maré. Dois territórios não demarcados que não são legalizados pelo Estado: são muitas violências como consequência da colonização,”relembra.
Kaê começou na música por meio do rap: fez parte do grupo “Crônicos”, com dois amigos angolanos da Maré que denunciava nas letras as violências vividas na comunidade. “A gente fez muita música juntos falando do racismo estrutural para falar sobre tudo que a gente estava sendo atingido. Foi muito massa porque foi um momento de aprendizado para eles entenderem o que que eu passei e eu entender o que eles viviam nessa sociedade racista, que quanto mais retinto você é , mais você vai estar sofrendo na cidade. Aí percebi que os indígenas também sofrem preconceito, eu sentia também essa violência na Maré. Tanto que eu e minha mãe somos conhecidas na Maré como índias, o que não é legal. Eu começava a questionar se eu também estava sofrendo e ninguém falando. Fala-se muito muito sobre o racismo que o preto tá sofrendo mas não fala sobre o que indígena sofre dentro das favelas, então e aí eu comecei a questionar. Hoje eu já tenho consciência do que eu estou vivendo, antes eu tentava me encaixar em vários padrões, ficava em nossa não eu tenho que ser um pouco mais branca, sem me pintar, sem me vestir como meu povo.”
Ser indígena num contexto urbano já é um desafio, e se nesse contexto o território é periférico o desafio é maior ainda. “ Eu senti na pele como é viver na cidade. Eu era tratada como alguém que nem existia, era uma menina fantasiada, achavam que eu estava vindo de alguma festa, faltava o respeito. Hoje por exemplo, já se entende a cultura afro com seus turbantes e tudo mais, mas não se entende a auto estima do indígena na cidade, a gente não tem liberdade nem pelo viés religioso nem pelo viés cultural de usar as nossas pinturas nos ambientes de trabalho, isso ainda é visto como algo anormal. Ainda não é confortável vê o indígena pintado, quando eu usava a saia do meu povo Guajajara era uma coisa assim como se eu tivesse fantasiada, como se eu não fosse da Maré, sendo que vivi uma vida e toda a família do meu pai é da Nova Holanda, sou cria da Maré!”, reivindica.
Sucesso na música
Atualmente Kaê faz música sobre a realidade dos povos indígenas urbanizados e, entendendo a reprodução do preconceito aos indígenas por ignorância, percebeu a música como forma potente de mudar essa realidade. Após três singles e três Eps – Hapohu, Uzaw e Wiramiri – , Kaê lançou em 2021 o primeiro álbum Kwarahy Tazyr que significa “filha do sol” em Ze’egete” sua língua materna. “Essa consciência de que você precisa falar sobre seu povo é um resgate. Há de se entender as causas de todo esse preconceito, todo esse apagamento, de como surgiu a luta, eu entendi que independente da visibilidade que eu tenho, independente do que eu faço com minha música, a gente está vivendo as consequências da colonização.”
Kaê é autora do livro Descomplicando com Kaê Guajajara – O que você precisa saber sobre os povos originários e como ajudar na luta antirracista. Além da música e da literatura, ela fundou o com mais amigos indígenas que moram em favelas cariocas, o Coletivo Azuruhu, que por meio da arte revela que a identidade dos povos indígenas resiste na cidade. “A gente faz o trabalho nas escolas, cria atividade junto com a Aldeia Maracanã para atender mais de perto. Pela arte-educação a gente mostra a realidade de nossos povos, mostra que nossa cultura está viva, claro que por meio da música também. Temos muitos projetos em andamento e outros para botar nas ruas, para levar conhecimento de qualidade. Estamos procurando investimento coletivo. Em 2 anos a gente acredita ter ferramentas mais acessíveis para o conhecimento do indígena em contexto urbano. Existe uma ideia colonial que o indígena não pode transitar pelo território, não pode usar tecnologia. Sofri inúmeros preconceitos que fizeram com que eu me entendesse nesse lugar, posso ajudar outros a não sofrerem o mesmo.”
Nos últimos anos Kaê também foi entendendo melhor questões relacionadas ao gênero e se reconheceu como uma pessoa não binária – ou seja, que se não se identifica com os gêneros masculinos e feminino. “A minha luta hoje é por autonomia, autodeclaração e demarcação. Mesmo depois do direito garantido ainda há luta pela manutenção do meu povo. Há várias terras com mercúrio e minério que os corpos indígenas vão pagar com a vida. Até demarcação de terra tem data de validade. Isso é fruto do apagamento, da colonização. Quando era pequena eu pensava que era só os brancos voltarem para Europa, hoje sou mais realista e mais otimista. Se a gente tiver mais espaço de troca, mais escuta a gente pode mudar a realidade,” finaliza.
Povos originários
Há 522 anos o Brasil era “descoberto” pelos homens brancos. Estima-se que por aqui viviam cerca de oito milhões de indígenas em 1000 tribos. Documentos da expedição de Cristóvão Colombo relatavam aldeias que já pareciam verdadeiras cidades, abrigando até 2 mil indígenas. Mas de lá pra cá esse número reduziu drasticamente, sobretudo entre os anos de 1600 a 1900, passando de milhões para a casa dos milhares.
Extermínios, epidemias e também escravidão foram os principais motivos dessa redução. Foi após a década de 1980 que esse cenário mudou um pouco – aumento de 150% em 10 anos. Nessa época o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – o IBGE – passou a incluir os povos indígenas no Censo Demográfico, o que pode ter influenciado este crescimento devido ao aumento de pessoas autodeclaradas indígenas.
O último Censo do IBGE realizado em 2010 registrou 817.963 indígenas. Em 522 anos, cerca de 7 milhões de pessoas pertencentes a este povo originário deixaram de existir. Só na última década (2009 a 2019) mais de 2 mil indígenas foram assassinados, um aumento de 21,6% em dez anos segundo o Atlas da Violência de 2021 – foi a primeira vez que a publicação divulgou dados específicos sobre a violência letal contra indígenas.
Nos últimos 3 anos essa realidade tem sido mais dura. Com o atual presidente alinhado aos grandes interesses do agronegócio, a “boiada” de grileiros invade terras indígenas a todo momento. Só em 2019, foram registrados 113 assassinatos e 20 homicídios culposos que, somados a outros casos de violências praticadas contra a pessoa indígena, totalizaram 277 casos em 2019 – o dobro do registrado em 2018.
Em meio a esse conflito com fazendeiros, madeireiros e garimpeiros, a população indígena também sofreu com a pandemia de covid-19. Muitos vivem em áreas remotas e isoladas, onde uma clínica ou médico podem estar a muitos quilômetros ou dias de distância, e mesmo aqueles que vivem em centros urbanos ainda enfrentam barreiras invisíveis – como idioma, estigma e pobreza – que podem manter a atenção à saúde fora do alcance.