Ícone do site Maré de Notícias Online | Portal de notícias da Maré

Três décadas de lutas pelas Crianças

Estatuto da Criança e do Adolescente completa 30 anos de atuação na garantia da cidadania

Maré de Notícias #117 – outubro de 2020

Hélio Euclides e Thaís Cavalcante

“…quebra-cabeça, boneca, peteca, botão, pega-pega, papel, papelão. Criança não trabalha, criança dá trabalho…” De uma forma animada, a dupla musical Palavra Cantada interpreta a canção Criança Não Trabalha, de composição de Arnaldo Antunes e Paulo Tatit. A música infantil lembra que trabalhar é coisa para adultos, que a criança tem de brincar, experimentar, bagunçar, riscar e desenhar. As preocupações devem ficar para o futuro. O trabalho infantil é crime, sendo um dos temas encontrados no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que, em 2020, completa 30 anos.

Com o papel de guardião da garantia dos direitos e deveres das crianças e dos adolescentes, os conselheiros tutelares são fundamentais nos territórios, na expectativa de melhoria da qualidade de vida. O Conselho Tutelar 11, em Bonsucesso, é o órgão gestor da área que abrange Manguinhos, Cidade Universitária,  Bonsucesso  e Maré. Os conselheiros recém-empossados são Carlos Henrique, Daniel Soares, Jader Fagundes, Maria Elisângela e Rosimere Nascimento. Pela primeira vez, os cinco profissionais do Conselho são oriundos de favela. Esse olhar próximo, a vivência e a bagagem são convertidas num atendimento sensível, de atenção e de uma maior escuta. 

O conselheiro Carlos Henrique, mais conhecido como Carlos Marra, é morador do Parque União, uma das 16 favelas da Maré e lembra que todos os direitos e deveres necessários, mencionados na lei devem ser cumpridos. Segundo Marra, o Conselho Tutelar tem de estar alinhado e junto com as redes de proteção, que são as de Saúde, Educação e Assistência Social. Este último reúne o CRAS (Centro de Referência de Assistência Social) e o CREAS (Centro de Referência Especializado de Assistência Social). “O conselheiro é esse articulador que vai fazer a ponte para a mediação dos equipamentos e, assim, possibilitar a criação de novas políticas públicas, pensadas a partir das necessidades reais e efetivas dos territórios. Precisamos estar o tempo todo dialogando com as escolas e estudando todas as questões, tipo as vagas para os estudantes e a evasão escolar. Na saúde, acompanhar a campanha da vacinação, a prevenção à gravidez na adolescência, o pré-natal e casos de IST/AIDS”, expõe. O conselheiro tutelar deve manter diálogo com pais ou responsáveis legais, comunidade, poder judiciário e executivo e, principalmente, com as crianças e adolescentes.

Marra avalia que, passados 30 anos, o ECA ainda precisa ser colocado em prática em sua integralidade. Para isso, seria necessário que os profissionais de saúde se apropriassem mais do estatuto, e que o mesmo fosse ensinado na sala de aula, para que crianças e adolescentes pudessem saber de seus direitos. Apesar das dificuldades, o documento é uma política pública, que reafirma e fortalece, de forma necessária, o desenvolvimento saudável de crianças e adolescentes, que são sujeitos de direitos.

Muitas vezes, as leis deixam de fora as crianças e os adolescentes, contudo, o ECA foi feito para protegê-las e, neste sentido, dialogar e entender quais são as melhores maneiras de atendê-los. “O ECA, mesmo com todos os retrocessos e questões políticas, ainda se mantém existindo e resistindo. Nós, conselheiros, estamos no trabalho de dar respaldo a esta ferramenta, que é muito importante para a sobrevivência das crianças e adolescentes”, finaliza Marra.

O Estatuto surge em 1990, para substituir o Código de Menores, de 1979, que era voltado apenas para crianças e adolescentes em “situação irregular”, associando pobreza à delinquência. O documento é fruto de uma forte mobilização da sociedade civil organizada e representa um novo olhar para os direitos desta parcela da população.

“Apesar das leis contidas no ECA, a proteção às crianças e adolescentes são diferenciadas, no asfalto ainda não é a mesma que na favela.” Beatriz Cunha, subcoordenadora de Infância e Juventude da Defensoria Pública do Rio

Garantia de direitos

A garantia de direitos é coletiva, mas quem faz a assistência jurídica integral e gratuita da população é a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, a qual, antes mesmo da pandemia, moveu uma ação civil pública para impedir a violação de direitos nas favelas. Conseguiu a proibição de operações policiais próximas às creches e escolas públicas, nos horários com mais movimentação. Fundamental na vida de crianças e jovens que, frequentemente, têm o seu direito à educação negado  por causa da violência cotidiana. 

Junto aos desafios enfrentados pelas famílias da Maré neste primeiro semestre, está a adaptação das aulas à distância. Beatriz Cunha, subcoordenadora de Infância e Juventude da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, acredita que o direito à educação não pode ser deixado de lado nem mesmo em uma pandemia. “O que me chamou a atenção foi a oferta de uma educação virtual na rede pública de ensino para aqueles que estão em situação de pobreza ou não têm pessoas que podem auxiliá-los no sentido educacional do conteúdo”, diz.

Cunha garante ainda que, devido ao isolamento social das famílias, aumentaram as demandas de violência doméstica e sexual contra crianças e adolescentes. Outro motivo de muita procura vinda dos moradores de favela foi sobre a falta de acesso à merenda escolar, já que as aulas presenciais continuam suspensas. Questões sociais antes urgentes, agora, borbulham. “Apesar das leis contidas no ECA, a proteção às crianças e adolescentes são diferenciadas, no asfalto ainda não é a mesma que na favela. A grande modificação do ECA é que a proteção integral à criança deve ser oferecida pela sociedade, pelo Estado e pela família”, comenta.

Existe uma versão ilustrada do ECA para o público infantil – Crédito: plenarinho.leg.br – Câmara dos Deputados

Apoio social promove cidadania

Esse fortalecimento de direitos é praticado diariamente pelas organizações sociais, como o Projeto Uerê, que atende crianças na Maré há 22 anos. Os filhos de Maria José, moradora da Nova Holanda, foram beneficiados pelo projeto de diferentes formas. Maria é mãe social, também conhecida como mãe acolhedora. Ela tem dois filhos biológicos e quatro filhas de coração. As crianças, que são irmãs, foram abandonadas e acolhidas por ela, junto ao Conselho Tutelar. Mãe solo teve seu maior apoio foi no Projeto Uerê, que deu todo o suporte na alimentação e educação das crianças e jovens. 

Maria se orgulha da criação dos filhos. Hoje, adultos, uns estão casados, outros formados. “O projeto é tudo. Ajuda na disciplina, na educação das crianças e apoia as famílias que querem”, conta. A partir da experiência de ser uma mãe acolhedora, ela avalia que, na prática, ainda há obstáculos para a garantia da cidadania: “As leis são difíceis, eu tive essa facilidade, pois tive o projeto para me ajudar. O direito, as crianças têm, mas às vezes não funciona”, conclui.

Francis Roberta, assistente social do Projeto Uerê há 19 anos, defende que o trabalho da instituição é de orientação, escuta e conversa. Um laço tão forte como o de uma família. “Trabalhamos as disciplinas regulares, como Inglês, Artes e Música; mas, principalmente, buscamos saber como estão nossas 270 crianças e jovens”, conta. A nova rotina da instituição, com a pandemia, tem sido de aulas remotas e a entrega de cesta básica e kits de higiene todo mês. Por fora, os desenhos dos muros do Projeto alegram a Nova Maré, favela onde a organização tem sua sede. Por dentro, as cadeirinhas coloridas e figuras na parede garantem a decoração para o retorno das atividades infantis, ainda sem data. 

Todos podem ajudar. 

Quem desejar assegurar a garantia dos direitos de crianças e adolescentes, é só entrar em contato com o Conselho Tutelar que atende toda a Maré.

Sair da versão mobile