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Unidades de saúde da Maré fecharam 26 dias em 2023 devido operações, aponta boletim

Além dos impactos no cotidiano e as mortes também há impactos na saúde mental dos moradores. (Foto: Pedro Padro)

Além dos impactos no cotidiano e as mortes também há impactos na saúde mental dos moradores. (Foto: Pedro Padro)

Dados do 8º Boletim de Segurança Pública da Maré mostram aumento das operações pelo segundo ano consecutivo, mas queda no número de mortes e outras violações

Edição #159 – Jornal Impresso do Maré de Notícias

Um bailinho de carnaval na escola é sempre uma alegria, mas algumas vezes, para as crianças de favela, o momento pode se tornar de angústia. Na manhã do dia 8 de fevereiro, mais uma vez, as aulas foram interrompidas por uma operação policial e, o que se viu foram mães e filhos correndo pelas ruas da Maré, com alunos usando fantasias. Era carnaval!

Essas e outras histórias de violações de direitos fazem parte dos dados do 8o Boletim Direito à Segurança Pública na Maré. O boletim é uma publicação do Eixo Direito à Segurança Pública e Acesso à Justiça da Redes da Maré, construído a partir do projeto De Olho na Maré! que, desde 2016, vem monitorando os impactos da violência armada no conjunto de favelas.

A análise dos dados do boletim acumulados ao longo dos anos tem sido fundamental para identificar medidas eficazes que vêm reorientando a política de segurança pública como um direito, e não como uma ameaça à população das favelas da Maré.

A publicação deste ano destaca a diminuição do número de mortes, mesmo com o aumento das operações policiais pelo segundo ano consecutivo. Em 2022 foram 39 mortes, contra 8 em 2023. Das operações, foram 14 em 2022 e 34 em 2023.

Enfrentar com dados

Raquel Willadino, diretora do Observatório de Favelas e coordenadora geral do Programa Direito à Vida e Segurança Pública, concorda. E acrescenta que: “o Boletim é uma ferramenta muito importante, não só para dar visibilidade para violações de direitos, mas também para pautar políticas voltadas para a redução de violências no território”. 

O antropólogo, cientista político e escritor, Luiz Eduardo Soares, que lutou pelo fim da Ditadura Militar no Brasil, sabia que não seria fácil construir um Estado democrático de direito em um país tão profundamente desigual e racista, patriarcal e violento. 

“Nunca poderíamos imaginar que, décadas depois, nossa luta ainda fosse pela edificação dos pilares do Estado de Direito. Sobretudo, em territórios excluídos de sua vigência, onde ocorrem ações policiais irresponsáveis, muitas vezes promovendo um verdadeiro genocídio”, avalia.

Luiz Eduardo considera que a esperança está nos modelos originais de organização popular e de produção coletiva de conhecimento. “Entre as iniciativas mais importantes, destaco o caso notável da Maré e o trabalho extraordinário que vem sendo feito articulando pesquisas, reunião de dados, análises e divulgação de críticas e propostas com base em evidências”.

Para o antropólogo,  isso representa um salto impressionante e aponta para novos horizontes. Faz com que a demanda social deixe de ser genérica, retórica ou abstrata, e se converta em vias realistas e positivas de mudança.

Impactos

Outro destaque do boletim é a Operação Maré, ocorrida entre os dias 9 e 18 de outubro de 2023. Mais uma vez os moradores do conjunto de favelas tiveram as rotinas interrompidas com a presença maciça das forças de segurança, impactando mais de 120 mil moradores com interrupção das aulas, fechamento de unidades de saúde e redução nas vendas do comércio local. Além disso, duas pessoas foram mortas e uma ferida por arma de fogo durante as operações.

Somente as unidades de saúde, em 2022, ficaram 19 dias sem abrir as portas, e em 2023, 26 dias, praticamente um mês sem atendimento. Em média, foram interrompidos 279 atendimentos por operação. 

No ano de 2023, as crianças da Maré ficaram quase um mês sem aulas e em média 8.099 alunos estiveram ausentes da escola por operação. Em cada operação são fechadas em média 20 escolas.

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Descumprimentos

A publicação destaca a Ação Civil Pública (ACP) da Maré, de 2017, como o primeiro ato judicial coletivo sobre Segurança Pública para favelas do Brasil, que determinou o cumprimento de medidas nas favelas visando a redução de danos e riscos durante as operações policiais. Outra vitória foi a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 635), de 2020, no Supremo Tribunal Federal. A ação determina que o Estado cumpra uma série de requisitos a fim de reduzir a letalidade policial nas favelas.

“A ADPF é a consolidação [de uma vitória] não só na Maré, mas em outras favelas. É possível ter um instrumento que possa pautar as operações policiais”, comenta Liliane Santos, coordenadora do Eixo de Direito à Segurança Pública e Acesso à Justiça, da Redes da Maré.

No entanto, o boletim também mostra que apesar dos avanços, houve o descumprimento da ADPF entre janeiro de 2022 e dezembro de 2023. Os números apontam que os policiais continuam sem usar câmeras – nos uniformes e as operações seguem acontecendo sem a presença de ambulâncias e próximo a escolas.

Múltiplas violações

Seguindo o ritmo da diminuição da letalidade, outras violações de direitos também caíram no último ano: o total foi de 213 registros em 2023 contra 259 em 2022. “Isso reflete um recorte diferenciado na Maré. Contudo, queremos zero violações”, diz Aristênio Gomes, pesquisador do De Olho na Maré e morador do Parque União.

Segundos os dados, as violações como ferimento com arma de fogo e tortura policial, saíram de 21 e 27 registros em 2022 para 9 registros cada, em 2023. Em contraponto, os registros de invasão de domicílio subiram de 31 em 2022, para 58 registros em 2023.

Os dados do boletim revelam ainda o perfil das vítimas das violações de direitos em operações policiais em 2023. Pretos e pardos somam 50% das vítimas, contra 21% dos que se identificaram como brancos. Quando se reflete sobre as faixas etárias, os que mais sofrem são os jovens- entre 20 a 29 anos, com 22%, seguidos por adultos de 30 a 39 anos, com 16%.

Violência e negligência

Das 52 mortes ocorridas nas operações nos últimos dois anos, apenas uma teve a perícia realizada. “Não pode ocorrer um assassinato e as autoridades não ouvirem ninguém da família, como ocorreu com o assassinato de Jefferson de Araújo Costa, de 22 anos, em que a família foi testemunha do crime”, critica Maykon Sardinha, pesquisador da Redes da Maré. 

Jefferson estava com a família em um protesto contra as violações sofridas em uma operação, quando foi morto com um tiro à queima-roupa na barriga, por um policial militar. O crime aconteceu na Avenida Brasil e o jovem não foi socorrido pelos agentes policiais.

Denise de Araújo, de 51 anos, moradora da Nova Holanda,  mãe de Jefferson, conta que o filho foi aluno dos Cieps Samora Machel e Hélio Smidt, e era um jovem que ajudava as pessoas. 

“Vejo na minha mente a camisa dele ensanguentada e sinto o cheiro do sangue. Sinto muito a falta dele, da sua voz e do abraço, às vezes, fico na esperança dele voltar. Fiz um frango ensopado com bastante coentro e açafrão, do jeito que ele gostava e não consegui comer. Ele adorava bolo de fubá, não consigo fazer mais”. 

Denise conta que foi agredida pelos policiais e que ainda sente dores.  Passados dois meses do ocorrido, o inquérito virou processo e o policial acusado está preso aguardando decisão judicial.

Para Felipe Souza, assistente de pesquisa do boletim, é preciso pautar uma segurança pública que pense na população das favelas. “Nas operações que acontecem na Barra da Tijuca não há mortes e o bairro não precisa parar. A favela não pode sempre ter seus direitos violados”.

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